As lições da Bolívia para a sustentabilidade do setor elétrico brasileiro

Data da publicação: 30/06/2006

A legislação sobre o gás natural que hoje está em análise pelo Congresso precisa garantir as condições para atrair o investimento privado e diminuir a posição de domínio da Petrobras sobre a rede de transporte de gás

 

O Jornal do Brasil publicou, em 1983, a seguinte nota: “Geisel avisava: De 1957, quando representante do Exército no Conselho Nacional do Petróleo, a 1979, quando deixou a presidência, o general Ernesto Geisel  batalhou  contra  a  construção  do  gasoduto boliviano. Argumentava: “E quando os bolivianos fecharem a válvula, o que é que eu faço? Mando o Exército lá abrir?”.

A seqüência de fatos que envolvem a Petrobras na Bolívia não afetou somente os consumidores de gás natural. Teve conseqüências tanto para o setor elétrico brasileiro, que precisa desse insumo, quanto para os projetos mais ambiciosos de integração continental.

Para início de conversa, foi no mínimo interessante observar o troco que estamos recebendo agora pelo ufanismo iniciado há mais de 50 anos com “O Petróleo é Nosso”. É a vez dos bolivianos proclamarem “O gás é nosso”.

Os movimentos do presidente Morales indicam seu desejo de enviar mensagens de força e soberania para a população que o elegeu recentemente. Ideologias e eleições à parte, está cada vez mais claro que o ponto central de todo o imbróglio iniciado pela Bolívia tem um nome: preço do gás.

E quando se fala em negociações deste tipo, o nome mais lembrado é o do Barão de Rio Branco, fundador de uma escola diplomática baseada no equilíbrio sutil entre serenidade e firmeza. O embaixador Rubens Ricupero, em palestra recente na USP, descreveu episódios diplomáticos onde a postura brasileira garantiu a estabilidade e a defesa do Brasil. Questionado por uma das pessoas na platéia se não deveríamos ser mais tolerantes com os bolivianos, resumiu: “Meu caro, com essa sua postura, você nunca estaria no meu time de negociadores.”

É importante que a Petrobras adote uma atitude firme e coloque sobre a mesa de negociação que o preço do gás boliviano deve levar em conta que o Brasil fez um investimento de US$ 1,5 bilhão num gasoduto parcialmente utilizado durante anos, mas que gerou à Bolívia receitas correspondentes ao seu uso integral, segundo uma cláusula de “take or pay”.

Também não deixa de ser curioso, depois do revés na Bolívia, observar pessoas, na própria Petrobras, cogitando investir dinheiro brasileiro numa aventura como a do gasoduto de 10 mil quilômetros que traria gás natural da Venezuela, cruzando a serra Venezuelana e o rio Amazonas.

Será que agora queremos também depender de gás natural controlado por Hugo Chávez, que pode “fechar a torneira” quando bem entender, em defesa da “Revolução Bolivariana”?

Depois de assistirmos a Chávez declarar que enviará técnicos da PDVSA (petrolífera venezuelana) à Bolívia para “colaborar” com seu “irmão”, alguém ainda duvida que o bom- mocismo venezuelano esconde interesses políticos e comerciais concretos? Os céticos sobre as ambições venezuelanas podem consultar o “Acordo da Alternativa Bolivariana para

os Povos da Nossa América”, assinado no dia 29 de abril de 2006 entre Bolívia, Venezuela  e, quem diria, Cuba. O documento está disponível em www.acendebrasil.com.br , seção “Análises de Terceiros”.

O governo acaba de produzir um documento para o setor elétrico, chamado Plano Decenal, onde a participação do gás natural como combustível primário na matriz elétrica nacional salta de 4,5% em 2005 para 12% em 2023. No entanto, a origem desse gás não é demonstrada.

Hoje, se todas as termelétricas instaladas fossem operadas, já haveria um déficit de gás natural de 16 milhões de metros cúbicos por dia, o equivalente a mais da metade dos 26 milhões de m3/dia transportados pelo gasoduto Bolívia-Brasil.

O que podemos fazer para retirar o Brasil dessa posição vulnerável e afastar a ameaça de uma crise energética? No curto prazo, pode-se buscar as alternativas do Gás Natural Comprimido (GNC) e do Gás Natural Liquefeito (GNL).

No longo prazo, é necessária uma coordenação de esforços.

Em primeiro lugar, a legislação sobre o gás natural que hoje está em análise pelo Congresso precisa garantir as condições para atrair o investimento privado e diminuir a posição de domínio da Petrobras sobre a rede de transporte de gás.

Em segundo lugar, é preciso total empenho na viabilização das reservas de gás natural nas Bacias do Espírito Santo e de Santos. Enquanto a primeira bacia pode contribuir com 6 milhões de m3/dia a partir de 2007, a de Santos pode agregar, em 2009, 12 milhões de m3/dia, chegando a 25 milhões de m3/dia em 2010. Um grande desafio, mas à altura do corpo gerencial da Petrobras, formado e qualificado ao longo de décadas, e não nos últimos três anos, como dá a entender a propaganda governista sobre a auto-suficiência em petróleo.

Em terceiro lugar, lembremos que temos um enorme potencial hidrelétrico inexplorado. Hoje contamos com 73.000 MW de potência instalada e 193.000 MW exploráveis, com a ressalva de que a parcela explorável enfrentará barreiras crescentes de custo e de questões ambientais. Esse potencial deve ser aproveitado com responsabilidade em todos os níveis (econômico, social e ambiental), mas não pode cair refém de grupos interessados em obter vantagens econômicas e/ou bandeiras políticas e pseudo-ambientais para barrar a construção de usinas hidrelétricas, importante fonte de competitividade econômica brasileira.

Essas ações, que diminuem nossa vulnerabilidade na oferta de gás natural e de eletricidade, precisam ser iniciadas ontem para assegurar a expansão segura da oferta de energia e viabilizar o crescimento de nossa economia.

Afinal, depender da ajuda de nossos amigos vizinhos parece não ser uma estratégia muito robusta.

 

Claudio J. D. Sales é presidente do Instituto Acende Brasil, entidade que promove a transparência, a sustentabilidade e o empreendedorismo privado no setor elétrico brasileiro.

(claudio.sales@acendebrasil.com.br)

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