Leilões de energia: O rei está nu

Data da matéria: 20/03/2006

O novo modelo de energia se propôs a atingir três objetivos: garantir o abastecimento de energia, promover tarifas módicas e atrair investimentos.

Assistimos ao primeiro leilão de energia nova no apagar das luzes de 2005. O timing do leilão foi bem escolhido. Às vésperas das festividades de fim de ano, os inúmeros relatórios de analistas tiveram pouca repercussão e pouco espaço na mídia. O Governo vendeu o evento como um sucesso. Analisemos os resultados.

De acordo com a Lei 10.848, que estabelece o novo modelo, 100% da demanda informada pelas distribuidoras deve ser atendida. Neste leilão, apenas 49% e 53% das demandas informadas para os anos de 2008 e 2009, respectivamente, foram atendidas. Em outras palavras, metade das necessidades das distribuidoras para estes dois anos ficou descoberta.

Pela primeira vez, no lugar de anunciar o índice de atendimento do leilão (que seriam os baixíssimos percentuais acima, evidenciando o fracasso do “primeiro grande teste do novo modelo”), o Ministério de Minas e Energia informou números de atendimento “em relação à demanda total” para cada ano. Ou seja, dividiu o que deixou de ser contratado nesse leilão por toda a demanda brasileira atendida por usinas construídas ao longo de mais de 50 anos. Nada a ver com o mérito do último leilão. Inflou-se o denominador para que o percentual de demanda não atendida parecesse menor.

A análise da curva de preços ao longo do tempo confirma a destruição de valor imposta aos geradores existentes, privados e estatais, que foram forçados a despejar sua energia nos leilões  de energia existente e não puderam competir no leilão de energia nova, que ofereceu preços mais atraentes. Enquanto a energia vendida para início de entrega em 2005 ficou em R$ 57/MWh, a energia para entrega em 2008 bateu em R$ 132/MWh para termelétricas e R$ 107/MWh para hidrelétricas.

Em seguida, nota-se a bastante heterodoxa distribuição entre oferta hidrelétrica (31% da energia vendida) e oferta termelétrica (69%). Com preços médios de R$ 114/MWh para a primeira e R$ 127/MWh para a segunda, fica óbvio que o consumidor poderia ter obtido um mix tarifário mais barato se a oferta hidrelétrica tivesse sido maior. A energia termelétrica é necessária para aumentar a diversidade da matriz energética e aumentar a segurança de abastecimento, mas os percentuais acima revelam as distorções competitivas e de precificação, causadas pelas regras falhas do leilão, que impuseram um preço-teto artificialmente baixo para as hidrelétricas.

Ilustrando o absurdo: como o preço máximo para hidrelétricas, na primeira fase do leilão, foi de R$ 116/MWh, é possível que uma hidrelétrica que seria construída por R$ 120/MWh tenha sido eliminada do leilão e uma termelétrica de R$ 125/MWh tenha ocupado seu espaço.

As regras do leilão, além de falhas, foram instáveis: sofreram alterações dois dias antes de sua realização. Além de instáveis, sem transparência: como o leiloeiro (Governo) tem o direito de eliminar demanda durante o leilão (frise-se aqui o “durante”), na prática o preço pode ser ajustado ao nível desejado. Menor demanda com a mesma oferta gera o acirramento artificial da  competição no lado da oferta e, logicamente, os preços caem, porém com o efeito de viabilizar uma menor quantidade de energia, atendendo a um número menor de consumidores. Isso não é leilão.

A grande vendedora foi a Petrobras, empresa-irmã da Eletrobras. As duas estatais venderam 63% da energia total. Se os preços serão suficientes para remunerar o capital ninguém sabe. Recentemente ouvimos de representantes de estatais que “a lógica de uma estatal é diferente da lógica de uma privada”. O que isso significa? Que o dinheiro do contribuinte não merece ser remunerado e que o patrimônio das estatais não merece respeito?

Dos sete bancos que emitiram análises do leilão, três recomendaram a venda das ações da Eletrobrás, pelo seu comportamento baseado em “governança corporativa discutível” e “assunção de projetos de baixo retorno”.

Virão os próximos leilões. O que fazer?

Poderíamos começar com total transparência na comunicação dos resultados do leilão. Reconhecer erros e a necessidade de ajustes é uma postura que denota maturidade dos administradores públicos.

Em segundo lugar, o “preço-teto” combinado com o “corte de demanda” se constitui numa verdadeira violência aos princípios que o leilão busca introduzir. Essa combinação dá ao leiloeiro o poder de induzir comportamentos dos competidores com base em parâmetros descolados da realidade. O que vimos em dezembro do ano passado foi o uso deliberado da palavra “leilão” – termo associado à competição e às leis de mercado – para atenuar o caráter intervencionista e discricionário das regras.

Também é importante insistir num risco comentado por todos discretamente, mas que alguém um dia terá que enfrentar de forma mais direta: é possível haver isonomia competitiva quando o definidor das regras do leilão é um dos conselheiros de uma das empresas estatais que competiram nos leilões? Deixo o leitor com duas palavras de estímulo à reflexão: informação assimétrica (1).

Finalmente, é crucial que as regras sejam aprimoradas para que seja viabilizada a participação de 23 usinas mais competitivas e mais adiantadas, algumas delas até com licenças de instalação emitidas. Essas usinas totalizam 5.300 MW de potência instalada. Se disputarem o leilão, intensificarão a competição e beneficiarão os consumidores com energia mais confiável e a preços menores.

Esperamos que o próximo leilão, com os ajustes acima, possa merecer esse nome.

Claudio Sales é presidente da Câmara Brasileira de Investidores em Energia Elétrica. A CBIEE representa os 16 maiores investidores privados, responsáveis por 66% da distribuição e 28% da geração de energia no país. (claudio.sales@cbiee.com.br)

 

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