Transparência para a situação de oferta de energia no Brasil
As reuniões do Comitê de Monitoramento do Sistema Elétrico deveriam ter atas públicas
Em outubro de 2005 escrevi um artigo intitulado “Transparência e o Comitê de Monitoramento do Sistema Elétrico”, disponível em www.acendebrasil.com.br, seção “Artigos”. O texto marca o início de várias manifestações públicas onde os empreendedores privados do setor elétrico defendem uma proposta muito simples e de execução imediata: dar transparência aos cenários e premissas com os quais o governo trabalha em relação à oferta de energia.
Esta ação eliminaria a especulação do mercado e possibilitaria aos agentes fazer suas programações e tomar as devidas ações com antecedência, evitando medidas emergenciais e diminuindo os custos para os consumidores.
Um ano após a publicação do artigo, além de constatar que a proposta ainda não foi implementada, surpreendeu-nos um novo fato que fere a busca pela transparência de informações no setor de energia.
Na edição de 18 de outubro de 2006 do Valor pudemos ler a matéria “Falta de gás afeta preço de energia e põe o setor em alerta”, sobre a proposta colocada em audiência pública pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para a definição de critérios de inclusão de termelétricas no planejamento da operação do setor. A discussão foi motivada porque, nos meses de agosto e setembro, um conjunto de térmicas, instadas a produzir energia de acordo com a programação do Operador Nacional do Sistema (ONS), não o fez por falta de combustível, no caso o gás natural.
A iniciativa da Aneel se explica porque a operação do setor busca a otimização dos recursos disponíveis: as usinas de custo menor são colocadas em funcionamento antes das usinas que produzem energia mais cara. A indisponibilidade de usinas por qualquer que seja a razão (como falta de chuvas no caso de hidrelétricas ou falta de combustível no caso de termelétricas) afeta a programação inicial do ONS e altera a configuração de quantidade e preço da energia.
Como o tema é sensível por implicar repercussões econômicas e produtivas para muitos agentes, o ministro de Minas e Energia, Silas Rondeau, foi entrevistado. Ao ser contestado sobre a possibilidade de uma crise de oferta e da elevação dos preços de energia, afirmou: “Mesmo em uma hidrologia ruim, o sistema tem 20% de energia térmica e 80% hídrica. E seria preciso uma situação muito comprometedora, um crescimento maluco do país, para suprir toda a folga existente. A capacidade instalada de geração de energia no país é de 102 mil megawatts e a carga média (consumo) é de 48 mil MWh, então, temos uma folga de mais de 50%”.
A frase acima, para o leitor leigo ou menos atento, é de uma lógica incontestável: 102 menos 48 é igual a 54, resultando na referida folga de 50%. Mas, faltou dizer que tal conta não faz sentido, por misturar conceitos não comparáveis: os 102 mil, citados por Silas Rondeau, referem-se à capacidade instalada, medida em MW, e os 48 mil referem-se à energia consumida, medida em MWh. Duas dimensões físicas muito diferentes, como bem sabe nosso ministro, que atua no setor há décadas.
Em primeiro lugar, entendemos que ao dizer “48 mil MWh” o ministro quis, na verdade, dizer “48 mil MW médios”. Afinal, o consumo, medido em GWh, equivale a uma carga de 49,3 mil MW médios no Sistema Interligado Nacional, de acordo com dados do ONS.
Em segundo lugar, uma consulta ao Banco de Informações de Geração da Aneel revela que
1.587 usinas disponibilizam uma potência outorgada de 101 mil MW. Assumimos, novamente, que o ministro, ao citar os 102 mil MW, referiu-se à potência outorgada total.
Alinhadas as dimensões, o cálculo, feito com base em dados oficiais (ONS e Aneel) de operação e características das usinas, revela que o mesmo Sistema Interligado é capaz de oferecer uma energia assegurada de 52,3 mil MW médios. Uma “folga” de 6% em relação à carga de 49,3 mil MW médios, bem diferente dos alegados 50%.
Em números absolutos, trata-se de apenas 3 mil MW médios de “folga”. Isto explica a iniciativa da Aneel ao convocar a audiência pública, uma vez que esta folga, apesar de já pequena, deve ser ainda menor se não for possível contar com algumas térmicas por falta de gás natural.
O próprio Ministério de Minas e Energia projeta em seu Plano Decenal que a carga atingirá 58 mil MW médios em 2010, considerando o cenário de referência de 4,2% de crescimento anual da economia. Esses números indicam tudo, menos folga em relação à energia assegurada.
A indevida comparação entre números de potência instalada e de energia consumida e a conclusão de que haveria uma folga de 50% conduzem a opinião pública e o consumidor de energia a conclusões erradas.
A Lei 10.848, de 15 de março de 2004, estabelece que a função do Comitê de Monitoramento do Sistema Elétrico é a de “acompanhar e avaliar permanentemente a continuidade e a segurança do suprimento eletroenergético nacional”.
Se as reuniões do CMSE passassem a contar com a participação de mais agentes (como, aliás, permite a mesma lei), ou se pelo menos suas atas fossem públicas, como as atas do Copom, este artigo não teria razão de existir.
Mas, enquanto a transparência não vem, esperamos que o episódio não tenha passado de uma confusão com os números – e o mínimo que podemos esperar é uma nova declaração do ministro esclarecendo qual a real dimensão da alegada “folga”.
Claudio J. D. Sales é presidente do Instituto Acende Brasil, entidade que promove a transparência e a sustentabilidade no setor elétrico brasileiro.