Artigo: Soluções complementares para atravessar a crise
O vírus Covid-19 colocou as empresas e consumidores do setor elétrico em uma crise sem precedentes, sendo que os principais impactos sentidos após o início da pandemia são a queda de consumo e o aumento de inadimplência
As empresas do setor elétrico proveem energia para 99,8% das residências e asseguram o insumo básico para todos os demais setores econômicos: indústrias, comércio, órgãos públicos, hospitais, postos de saúde e tantos outros. Mas o fornecimento de energia com segurança e eficiência econômica requer o funcionamento harmônico de uma complexa cadeia de valor cujos elos são a geração, transmissão, distribuição e comercialização de eletricidade (GTDC).
Essa harmonia é assegurada por dois elementos principais: a regulação do setor – implementada pela Aneel, que define tanto as tarifas quanto os padrões de qualidade do serviço – e o conjunto de contratos das empresas com o Estado e de contratos das empresas entre si, envolvendo todos os elos da cadeia GTDC.
O vírus Covid-19 colocou as empresas e consumidores do setor elétrico em uma crise sem precedentes, sendo que os principais impactos sentidos após o início da pandemia são a queda de consumo e o aumento de inadimplência.
Diante desse quadro, o desafio é restabelecer a sustentabilidade do setor valendo-se do respeito absoluto à regulação e aos contratos. O desrespeito a um ou a outro seria o caminho para o colapso do setor e para uma crise de abastecimento elétrico.
Este desafio está sendo enfrentado de forma coerente com um olhar no consumidor e outro no equilíbrio dos diferentes elos do setor elétrico.
Assim, uma das primeiras medidas tomadas pela Aneel em 24 de março foi determinar que, durante três meses, as distribuidoras não poderiam cortar energia de consumidores residenciais inadimplentes. A iniciativa, apesar de compreensível, provocou um efeito colateral indesejável, pois as distribuidoras perderam o único instrumento de inibição de inadimplência de que dispunham.
Outra iniciativa importante foi a Medida Provisória 950, detalhada no Decreto 10.350/2020, e regulamentada pela Aneel em 23 de junho via Resolução Normativa nº 885. Trata-se de uma solução de curto prazo – importante e urgente – para amortecer o impacto tarifário para os consumidores e para dar fôlego financeiro às distribuidoras a fim de que elas continuem cumprindo as obrigações contratadas com geradores e transmissores em leilões realizados pelo governo, bem como pagando os encargos setoriais, itens que compõem a chamada “Parcela A” da tarifa de eletricidade.
Na prática, a Aneel definiu o teto de cerca de R$ 16 bilhões (“conta Covid”) para um financiamento que antecipa recursos a que as distribuidoras teriam direito nos próximos reajustes tarifários e ameniza o impacto médio imediato de cerca de 12% sobre as contas de luz. No entanto, a Aneel não equacionou o desequilíbrio econômico da distribuição.
Se a agência reguladora tivesse desde já apontado critérios metodológicos para recomposição do equilíbrio econômico das concessões em face da pandemia – considerando, por exemplo, a redução do mercado e o aumento extraordinário de inadimplência – o risco regulatório teria diminuído e o setor poderia operar com menos incerteza.
A Aneel afirmou que abriria consulta pública em até 60 dias para estabelecer a metodologia do reequilíbrio econômico das concessões de distribuição. Dada a urgência do tema, esse cronograma precisa ser acelerado: após o início da consulta, haverá prazos para sua conclusão, para o processamento das contribuições recebidas e para as decisões finais, o que poderia levar à aprovação da metodologia apenas no último trimestre de 2020, o que seria muito tarde.
Além das soluções de financiamento de curtíssimo prazo e da recomposição do equilíbrio econômico das concessões de distribuição, é desejável disparar o quanto antes a discussão de outras soluções complementares para promover a desoneração, a sustentabilidade e a continuidade da operação regular do setor elétrico.
O principal mérito das 10 soluções complementares (detalhadas em www.acendebrasil.com.br/estudos) que foram desenhadas a partir de discussões com empresas dos quatro elos da cadeia de valor é que elas observaram os seguintes princípios: (1) respeito aos contratos; (2) todas as soluções devem ser consensuais, voluntárias e equitativas; (3) as soluções buscam prevenir e evitar litígios, sem transferir ônus entre elos da cadeia de valor; e (4) exatamente por serem voluntárias, asseguram o respeito aos contratos e evitam a judicialização.
As soluções envolvem, por exemplo: (a) aporte da União na CDE para financiar subsídios e eliminar as subvenções extrassetoriais da tarifa, retornando os custos de políticas públicas gerais ao Tesouro Nacional; (b) redução voluntária e consensual de CCEARs com contrapartida de extensão de prazo da outorga; (c) redução consensual e voluntária de CCEARs com contrapartida de alteração de cronograma de empreendimentos; (d) antecipação voluntária do pagamento pelo UBP ao Tesouro Nacional com contrapartida de extensão de prazo da outorga de hidrelétricas; e (e) financiamento do fluxo de caixa de geradores, transmissores e consumidores tanto no mercado regulado quanto no mercado livre.
Como se pode notar pelos cinco exemplos acima, as soluções complementares atuam sobre diversas frentes e têm distintos objetivos.
O aporte da União na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) para eliminar subvenções extrassetoriais é uma demanda antiga do setor que poderia ser viabilizada neste momento de pressão de custos sobre as empresas do setor elétrico e de pressão tarifária sobre os consumidores de eletricidade. A ideia é que alguns subsídios alheios ao setor elétrico que chegam a R$ 3,9 bilhões anuais e cujos cronogramas de eliminação já estão definidos – como os que têm beneficiado as classes rural, de irrigação e água, esgoto e saneamento – tenham sua eliminação acelerada para que esta política pública passe a ser arcada pelo contribuinte, e não pelo consumidor de energia elétrica, como deveria ter sido desde o início.
Já a redução voluntária e consensual de Contratos de Comercialização de Energia no Ambiente Regulado (CCEARs) tendo como contrapartida a extensão do prazo de outorga é uma medida que desonera o consumidor e possui impacto fiscal baixo e bastante diferido quando se considera a extensão da outorga.
De forma similar, a redução consensual e voluntária de CCEARs com contrapartida de alteração de cronograma de empreendimentos envolve reduzir montantes dos CCEARs para mitigar sobrecontratação futura (pelo adiamento do cronograma de novos empreendimentos de geração) e atual (pelo swap de data dos CCEARs vigentes) das distribuidoras, compensando o gerador com extensão da outorga (e/ou do CCEAR), podendo inclusive ser acompanhada de oferta de financiamento. Este tipo de medida impede que a sobrecontratação das distribuidoras onere futuramente o consumidor e, se acompanhada do swap de datas dos CCEARs atuais, pode desonerá-lo também imediatamente. Além disso, a correlata extensão da outorga possui impacto fiscal baixo e bastante diferido.
A antecipação voluntária do pagamento pelo Uso de Bem Público (UBP) ao Tesouro Nacional com contrapartida de extensão de prazo da outorga de hidrelétricas tem o objetivo de ampliar a liquidez da CDE com a antecipação, pelos geradores, do pagamento pelo UBP, compensando o gerador com extensão do prazo de sua outorga. Esta medida amplia recursos disponíveis na CDE, desonerando o consumidor e ampliando a sustentabilidade do setor.
Finalmente, o financiamento do fluxo de caixa de geradores, transmissores e consumidores tanto no Ambiente de Contratação Regulado (ACR) quanto no Ambiente de Contratação Livre (ACL) busca a disponibilização de financiamento (pelos BNDES e outros bancos) do fluxo de caixa de geradores e transmissores (que aderirem voluntariamente às medidas transitórias propostas) como instrumento de desoneração temporária dos custos intrassetoriais. No caso de financiamento para consumidores, a condição para esta oferta seria que os recursos financiados fossem usados para honrar seus contratos no setor elétrico.
As 10 soluções complementares podem ser vistas como um conjunto de medidas que, além de corrigir algumas distorções, exploram formas consensuais e voluntárias que implicam “ganha-ganha” para todos (empresas, consumidores e governos), permitindo tanto a adoção de políticas públicas transitórias de desoneração setorial quanto a mitigação do impacto presente e futuro para os consumidores.
Claudio J. D. Sales e Eduardo Müller Monteiro são, respectivamente, Presidente e Diretor Executivo do Instituto Acende Brasil