“Taxa solar”, mas chame de ignorância das trevas

Data da publicação: 10/01/2020

Há menos de um mês, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) celebrou os elogios públicos recebidos da Moody’s e da Standard and Poor’s pela transparência e pela qualidade do ambiente regulatório no setor. No pós-Réveillon, o presidente Jair Bolsonaro mirou na cabecinha da agência e resolveu que estão encerradas as discussões que ocorriam desde o início do ano passado sobre mudanças nas regras para a geração de energia por painéis solares. Depois do “ninguém mais conversa” e “se alguém falar eu demito”, Bolsonaro recebeu um diretor da Aneel no gabinete presidencial. Saiu de lá, foi para o Palácio da Alvorada, abraçou seus apoiadores e disse, olhando teatralmente para o sol ao ser questionado por jornalistas: “Não serás taxado”. Coube ao porta-voz da Presidência contar qual era a posição do diretor e esclarecer que a Aneel entendeu finalmente que a energia fotovoltaica não deve ficar mais cara. Ah, autonomia decisória…

Não é novidade colocar em xeque a liberdade de quem regula setores com bilhões de investimentos nacionais e estrangeiros. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva mal havia subido a rampa quando, no 49º dia de sua administração, convocou seus líderes no Congresso, em fevereiro de 2003, para atacar o “poder paralelo” das agências e se voltar contra o processo de “terceirização do Estado”. “Elas mandam no país”, queixou-se, conforme os relatos.

Governo agiu mal com a Aneel, na forma e no conteúdo

Desta vez, a geração distribuída (GD) tornou-se pivô da crise. Nada mais distorcido do que falar em uma “taxa solar”. Um debate árido foi ofuscado por interesses políticos, simplificações, muito lobby e uma bem-sucedida campanha de comunicação. Tudo bem, faz parte do jogo. Mas esperava-se mais de quem detém o poder da caneta para escapar dessa cortina de fumaça. Como já disse um jurista americano, a luz do sol é o melhor desinfetante.

De forma simples: a conta de luz embute custos de geração, transmissão, distribuição, tributos e encargos. Tributos e encargos já somam preocupantes 49,8% da tarifa (dados de 2018 recém-compilados pelo Instituto Acende Brasil). Os segmentos de geração e transmissão têm seus problemas, mas vamos nos ater ao que pagamos às distribuidoras (empresas como Eletropaulo, Light e CEB). Na distribuição, paga-se essencialmente duas coisas: energia e rede. Energia é o “mix” do que ela compra nos leilões do mercado regulado (geração hídrica, térmica, eólica) e megawatts que provêm de outros contratos, como Itaipu e as usinas nucleares de Angra. Rede é fiação aérea, postes, cabeamento subterrâneo, subestações. Enfim, tudo aquilo que leva eletricidade até as casas, lojas, escritórios.

Quem instala placas solares em casa fica isento dos custos da rede (TUSD no jargão do setor) e de impostos como ICMS. Mas continua se beneficiando da rede. Tanto que entrega à distribuidora a energia gerada no teto de casa. Chamada de “microgeração”, ela permite acumular créditos e abatimento na tarifa. Dá para ficar totalmente “off grid”? Dá, basta ter também uma bateria, mas elas ainda são caras, caríssimas, ultrapassam R$ 200 mil ou R$ 300 mil. Na prática, hoje é a rede das distribuidoras que funciona como uma espécie de “superbateria”. Graças a ela, o microgerador não se preocupa com o fornecimento de luz em dias nublados e fica tranquilo para dar uma festa à noite com os eletrônicos ligados. Há 60 meses para gastar os créditos gerados.

Surgiu ainda um bom negócio em torno desse mecanismo. Os consumidores podem se tornar sócios de “condomínios solares”, que instalam placas fotovoltaicas em terrenos geralmente baratos e afastados de seu ponto de consumo. Uma empresa monta uma unidade no oeste da Bahia e manda a energia para agências bancárias em Salvador, mesma área de distribuição. Cerca de um quinto da GD no Brasil é feita com esse modelo, a geração remota.

Cada caso é um caso, mas é factível amortizar todo o valor investido nas placas em quatro a seis anos. Um retorno anual na faixa de 20%. Foi um incentivo justo. Tecnologias nascentes e importantes merecem sempre um empurrão. Só que não daria para ficar indefinidamente assim. Todos os que não temos placas solares no teto de casa continuamos pagando pela rede das distribuidoras: a expansão, a manutenção, a depreciação da rede existente. Para cada mansão mais com geração solar, menos um para ratear a conta toda.

Por isso mesmo, desde 2012 havia uma previsão de rever a norma. Pelas projeções da Aneel há cinco anos, no cenário tido como mais otimista, se chegaria ao fim de 2019 com 500 MW de capacidade instalada em geração distribuída. O crescimento foi muito acima do imaginado e hoje são 2.024 MW. A trajetória é de alta. Quem paga esses subsídios apropriados pelos donos das placas fotovoltaicas? A gente! E quanto? Nas estimativas feitas pelo Ministério da Economia, R$ 34 bilhões entre 2020 e 2035!!!

O que propôs a Aneel? Para quem já tem placas solares, nada muda até 2030. Para quem está entrando, nada muda até atingir o acumulado de 4,7 mil MW de potência instalada. Quando isso for alcançado, a gratuidade da rede acabaria. Não significa instituir uma “taxa solar”, como diz Bolsonaro, mas maneirar nos subsídios. A geração distribuída continuaria, sim, sendo bastante atrativa. O preço médio das placas caiu 75% nos últimos oito anos e o sistema de créditos seria mantido.

Para quem instalar painéis, não dará mais para recuperar o investimento em quatro ou seis anos, mas certamente o retorno virá em 12 ou 15 anos. Alguma outra aplicação, em economia estabilizada, rende tanto? Tanto que a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), responsável pelo planejamento do setor, prevê que a geração distribuída sairia do atual 0,63% para 5,16% da matriz elétrica em 2029, mesmo com todas as mudanças.

Como se tem dito nos fóruns internacionais, “solar rocks”, a luta contra o aquecimento é uma prioridade. Mas pode-se fazer isso com uma aposta em grandes usinas solares. Em Pernambuco, o grupo espanhol Solatio ergue um projeto com 1,1 mil MW de capacidade. No leilão organizado pelo governo em outubro, foram contratados 530 MW de solar por R$ 85/megawatt- hora. Menos do que o valor das eólicas, metade do que se pagaria em novas hidrelétricas, um terço de térmicas a gás. Sem subsídios.

A proposta da Aneel merece discussão e, quem sabe, aperfeiçoamentos. Pode-se falar em fim do monopólio das distribuidoras, uma taxa de retorno mais baixa, ampliação do mercado livre. Refugiar-se na desculpa da “taxa solar” só joga o suposto liberalismo econômico de Bolsonaro nas trevas.

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