A CP 10 da ANP e o futuro das tarifas de transporte de gás
O recente aumento de 26% da tarifa aplicada aos usuários da rede de transporte de gás natural da NTS – em relação ao divulgado inicialmente no processo de oferta de capacidade desta transportadora – poderia ser recebido com surpresa por um cidadão leigo por ser uma alteração tarifária muito acima dos tradicionais índices inflacionários como o IPCA, que hoje gira em torno de 4,0%.
Mas poderia esse aumento ser encarado com surpresa pelos agentes que integram a cadeia de valor de gás natural, pelas autoridades e pelos especialistas do setor? Além disso, o aumento teria elevado o lucro da transportadora de gás natural? A resposta para ambas as perguntas é “não”, como discutiremos a seguir.
Não há surpresa porque, de forma simplificada, o aumento citado acima pode ser explicado pela metodologia utilizada para definir as tarifas de transporte de gás natural, um negócio regulado e sujeito a economias de escala, e que se baseia no princípio da Receita Máxima Permitida.
De acordo com esta metodologia, a Receita Máxima de uma transportadora é definida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), e este montante – que serve para cobrir custos, despesas e tributos para prestação do serviço (numerador) – é dividido pelo volume da capacidade contratada para transportar o gás pelo gasoduto (denominador), resultando na tarifa unitária de transporte de gás.
Dessa forma, quanto maior o volume de capacidade contratada no gasoduto, menor a tarifa unitária aplicada. Portanto, é importante perceber que:
(1) os transportadores de gás não se beneficiam de aumentos ou reduções da tarifa unitária cobrada aos usuários da infraestrutura, pois recebem a mesma receita máxima;
(2) mas os consumidores conectados ao sistema são beneficiados pelo aumento de volume transportado (ou da capacidade contratada).
No caso específico da NTS, a explicação para o choque tarifário foi uma frustração da previsão de volume contratado pelo mercado. A surpresa de alguns até se justifica porque – conforme noticiado aqui na agência epbr – a proposta tarifária inicial da NTS (tarifa de referência) previa pequena redução nos volumes alocados à Petrobras para 2024, previsão que se frustrou por uma mudança no perfil por esta solicitado, o que implicou o recálculo da tarifa de referência.
A frustração deste processo é emblemática pois, ao materializar os efeitos de fuga de demanda sobre a previsibilidade tarifária, dispara alarmes sobre a importância do resultado da Consulta Pública 10/2023 aberta pela ANP para resolver um impasse que se arrasta desde 2020 atrelado à equivocada classificação pela Arsesp (reguladora estadual de São Paulo) do gasoduto Subida da Serra como gasoduto de distribuição.
Se o gasoduto Subida da Serra for classificado como gasoduto de distribuição, poderá haver retirada de volume significativo de contratação do sistema de transporte, gerando precedente nocivo que, se replicado, levará à “espiral da morte” das redes de transporte. Os detalhes deste caso estão disponíveis no estudo “O Fenômeno bypass, a Desintegração do Mercado de Gás Natural e seus Impactos”.
Os alarmes são disparados porque a mesma consequência observada no processo de oferta de capacidade da NTS – aumento expressivo da tarifa de transporte em função da redução do volume contratado nas redes de transporte – poderá ser observada sucessivas vezes caso a ANP continue tendo sua autoridade desafiada quanto à classificação de gasodutos.
O modelo idealizado para o mercado brasileiro de gás natural foi planejado e estruturado pelos formuladores de políticas públicas com o intuito de estabelecer um mercado integrado, aberto, e com papeis claramente definidos para cada um dos agentes da cadeia de valor.
Visando a dar segurança jurídica aos investimentos, o arcabouço legal definiu as atribuições destes múltiplos agentes, bem como das autoridades envolvidas na regulação e fiscalização das atividades. Desta forma, a Constituição Federal define a atividade de transporte de gás natural como sendo monopólio da União, enquanto serviços locais de distribuição do gás canalizado são atribuição dos estados.
Ao autorizar a utilização do Subida da Serra como gasoduto de distribuição, a Arsesp permitiu o bypass (desvio) de uma quantidade de gás da malha de transporte atual (que conta com um gasoduto com traçado semelhante ao Gasoduto Subida da Serra), gerando custos desnecessários de infraestrutura ao consumidor paulista.
O impacto tarifário não ficará isolado aos consumidores paulistas, pois afetará também os demais estados atendidos pela rede integrada de transporte nas regiões: Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste.
Ciente do impacto negativo ao mercado integrado de gás natural que a invasão de competência pelos agentes estaduais pode gerar, a ANP solicitou à Procuradoria Federal junto à ANP que procedesse com os trâmites necessários para questionar junto ao Superior Tribunal Federal (STF) a constitucionalidade da decisão paulista.
Adicionalmente, diante da proliferação de iniciativas desta natureza em diversos estados do país, a ANP confirmou, em novembro de 2023, o interesse em questionar, junto ao STF, a constitucionalidade de decretos e leis estaduais que dispõem sobre temas de sua competência.
Embora no curto prazo o bypass do sistema de transporte possa parecer atrativo para alguns, no longo prazo o bypass reduz a opção de escolha e a concorrência de preço entre supridores, além de aumentar o risco de segurança de suprimento dos mercados locais, pois tornará o fornecimento de gás natural dependente de um único agente.
Neste momento de desenvolvimento do mercado nacional de gás natural, a promoção à adesão a redes integradas de gasodutos é crucial, pois assim o custo das redes é diluído entre mais consumidores, tornando a provisão pelo mercado integrado cada vez mais atraente.
A ANP, com base na Constituição Federal e na clara legislação sobre o tema, precisa atuar como guardiã dos papéis de cada um dos elos ao longo da cadeia de valor e preservar a integridade e a eficiência global do Modelo Integrado de gás natural.
O resultado da Consulta Pública 10/2023 a ser divulgado pela ANP será peça essencial nesse delicado quebra-cabeças de formação de um mercado realmente integrado de gás natural que seja capaz de oferecer aos consumidores mais flexibilidade e segurança com tarifas de transporte cada vez menores.
Eduardo Müller Monteiro e Patricia Guardabassi são Diretor Executivo e Gerente de Projetos do Instituto Acende Brasil.