A Modernização do Setor Elétrico e o despacho por oferta
05/Dez/2020, Revista Brasil Energia – Nos últimos anos, profundas transformações vêm ocorrendo no setor elétrico: (a) o ingresso de novos agentes ensejado pelas privatizações e os leilões de energia e de transmissão alteraram a estrutura do setor; (b) a matriz elétrica tem mudado com a participação crescente de fontes renováveis não controláveis (eólica e solar); (c) tem aumentado a parcela de consumidores que podem escolher o seu fornecedor de energia; e (d) começam a ser implantados recursos energéticos distribuídos (como a geração fotovoltaica e os veículos elétricos).
A fim de lidar com estas transformações, as autoridades governamentais têm proposto mudanças na legislação setorial, e o tema está sendo tratado tanto pelo Grupo de Trabalho da Modernização do Setor Elétrico no Ministério de Minas e Energia quanto pelo Congresso Nacional a partir de dois projetos de lei (o PL 232/2016 no Senado e o PL 1917/2015 na Câmara dos Deputados).
É muito bom que as autoridades pensem sobre as reformas necessárias porque um arcabouço institucional adequado é essencial para viabilizar uma transição sem grandes percalços.
Entre os vários temas abordados na pauta de modernização, um dos mais audaciosos é a introdução do “despacho por oferta”, assunto encarado com ceticismo por alguns agentes.
De fato, estabelecer um mecanismo de mercado para coordenar a operação do sistema não é trivial e pode acarretar consequências graves se for mal implementado, mas seus benefícios potenciais justificam o esforço.
A operação atual de usinas geradoras de eletricidade no Brasil é pautada por modelos computacionais (Newave, Decomp e Dessem) que definem o pré-despacho programado para o dia seguinte. O despacho centralizado facilita a otimização da perspectiva sistêmica, independentemente dos efeitos sobre agentes individuais, mas não é garantia da operação otimizada. Afinal, são notórias e documentadas as limitações dos modelos computacionais hoje empregados, e a otimização centralizada sempre dependerá da qualidade dos dados que alimentam os modelos.
A opção pelo despacho por oferta não implicaria perda da coordenação centralizada e ainda teria a vantagem de incentivar os agentes a buscarem maior eficiência operacional. A definição da ordem de pré-despacho continuaria sendo centralizada, mas a “ordem de mérito” de menor custo para atendimento da carga em cada hora do dia seguinte seria definida a partir dos lances de oferta de preços e quantidades submetidos pelos geradores (e pelos consumidores com “cargas interruptíveis”).
O despacho por oferta não é mais uma “jabuticaba” brasileira, pois é assim que os mercados de energia são estruturados em todo o mundo. No entanto, o desenho de mecanismo de mercado adequado ao setor elétrico brasileiro é mais complexo dada a prevalência da geração hidrelétrica e, portanto, requer o atendimento de vários requisitos.
Em primeiro lugar, é necessário que o mecanismo de mercado seja capaz de “internalizar” as chamadas “externalidades” (ou os impactos que uma transação acaba tendo sobre terceiros não envolvidos na transação, algo bastante presente no nosso sistema em que há hidrelétricas em série no mesmo curso d’água). Em segundo lugar, é preciso assegurar que o mercado será suficientemente competitivo para disciplinar os preços. Em terceiro lugar, o Mecanismo de Realocação de Energia para as usinas hidrelétricas deve ser modificado para torná-lo independente dos lances de oferta dos agentes.
Caminhos para lidar com cada um destes requisitos foram abordados em um projeto de pesquisa e desenvolvimento liderado pelo Instituto Acende Brasil e cujos resultados são resumidos no livro Reflexões sobre uma Arquitetura de Mercado para o Setor Elétrico Brasileiro.
Os desafios são grandes, mas não intransponíveis, e precisamos avançar em direção a mecanismos que promovam maior eficiência na operação do sistema elétrico.
Claudio J. D. Sales e Richard Hochstetler são, respectivamente, Presidente e Diretor de Assuntos Econômicos e Regulatórios, do Instituto Acende Brasil