Boas (e más) práticas legislativas (com exemplos do setor elétrico)
O Congresso Nacional tem se envolvido cada vez mais na formulação de políticas públicas para o setor elétrico. É bom que os parlamentares se preocupem com a provisão de energia elétrica de forma módica e eficiente e com a qualidade almejada pelo consumidor. Também é salutar que os parlamentares busquem promover políticas de “transição energética” para fontes mais limpas e renováveis, embora quem conheça a situação brasileira saiba que 85% de nossa matriz elétrica é renovável, respondendo por menos de 3% das emissões de gases efeito estufa no país.
Porém, é preciso prudência, disciplina e parcimônia na promoção de iniciativas legislativas porque, caso contrário, corre-se o risco de criar mais problemas do que soluções.
Nos últimos anos, o voluntarismo parlamentar tem se intensificado, com projetos de lei adentrando cada vez mais na minúcia regulatória do setor. Os riscos associados a este ativismo legislativo são discutidos a seguir.
Engessamento da regulação setorial
O engessamento da regulação setorial acontece quando leis muito prescritivas especificam “o que”, “quando”, “onde” e “como” as ações devem ser executadas, condenando estes comandos ao risco de rapidamente ficarem defasados e desconectados da realidade.
Um exemplo deste distanciamento da realidade é o artigo 1º da Lei 14.182, que inclui um “jabuti” explícito inserido na lei de desestatização da Eletrobras. Este artigo determina a contratação de 8 GW de termelétricas a gás natural em determinadas regiões do país para operar de forma inflexível (operar pelo menos 70% do tempo). Quem examina as exigências previstas nesta lei pode concluir que essa imposição arbitrária é uma forma de sabotagem do bom planejamento da matriz elétrica do país, pois a mesma prescreve, sem definir objetivos ou princípios a serem seguidos, a contratação de:
- uma quantidade enorme de geração adicional em um contexto em que a oferta de energia supera a demanda, resultando no desperdício de energia proveniente de geração hidráulica, eólica e solar;
- operação inflexível em momento quando há severa escassez de flexibilidade operativa do sistema, a ponto de precisarmos programar Leilões de Reserva de Capacidade especificamente estruturados para ampliar a oferta de flexibilidade;
- termelétricas a gás natural em locais em que não há suprimento de gás natural; e
- usinas localizadas em regiões distantes dos grandes centros de consumo.
Qual é a lógica por trás desta contratação? Quais são os objetivos almejados? O texto da lei não proporciona estas respostas básicas, suscitando perplexidade e desconfiança do cidadão em relação às intenções dos parlamentares.
Decisões sem domínio técnico
Os integrantes do Congresso Nacional precisam aceitar que, antes das imposições embutidas nas leis que eles concebem, há um outro conjunto de leis superiores que não podem ser ignoradas: as Leis da Física.
O funcionamento de um sistema de potência é técnico e complexo, pois os fluxos de potência seguem pela rede elétrica pelo caminho de menor impedância, o que varia continuamente em função da topologia da rede e da injeção e retirada de energia em cada barra do sistema.
Não é razoável esperar que legisladores se envolvam em discussões técnicas como as expressas no parágrafo acima. Leis que estabelecem regras desconsiderando as complexidades técnicas de um sistema de potência estão fadadas ao fracasso, pois dão origem a externalidades que provocam distorções que, no longo prazo, elevarão os custos para os consumidores.
Um exemplo deste tipo de distorção é o Projeto de Decreto Legislativo 365/2022 que tramita no Senado Federal. O projeto busca “sustar” a aplicação das chamadas “tarifas locacionais” do sistema de transmissão de eletricidade estabelecidas pela Aneel e que estão embutidas nas contas de luz pagas pelos consumidores desde 2009.
É essencial entender que a tarifa locacional não eleva o valor agregado que é cobrado do conjunto de todos os usuários do sistema de transmissão; a tarifa locacional apenas diferencia as tarifas entre os usuários em função de quanto cada um onera o sistema. Ou seja, quem usa mais a rede elétrica deve pagar mais por isso. Esta precificação é imprescindível para coordenar a tomada de decisões de localização de unidades de consumo eletrointensivas e de novas usinas de geração.
Retirar o sinal locacional da tarifa não fará estes custos desaparecerem. Haverá apenas uma transferência de custos dos usuários que demandam mais da rede de transmissão para os usuários que demandam menos. E as distorções tendem a crescer ao longo do tempo, pois novas decisões de investimento serão feitas desconsiderando os reais custos de transmissão para atender a cada usuário do sistema.
Didaticamente, uma tarifa elétrica sem sinal locacional é como uma tarifa aérea que não leva em conta os locais de origem e de destino do voo.
Este tema é muito pertinente, pois o custo de transmissão é a segunda parcela da tarifa elétrica que mais aumentou nos últimos anos, perdendo apenas para os encargos setoriais.
Também é importante destacar que a tarifa locacional não foi invenção da Aneel. Foi o próprio Congresso, em 2004, que determinou a adoção de tarifas “com sinal locacional”, adicionando este requisito ao rol de atribuições da Aneel elencadas na Lei 9.427/1996.
Apesar de ser responsabilidade da Aneel, o PDL 365 atropela todo o ritual regulatório – construído por pessoal técnico e especializado da Aneel – a fim de satisfazer os interesses de grupos de pressão – predominantemente geradores eólicos localizados em determinadas regiões do país – que não querem ver as tarifas de transmissão refletirem os custos reais.
Negociações e barganhas incompatíveis com coerência técnica e sistêmica
O Congresso Nacional é um ambiente de negociação política, troca de apoio e soluções de compromisso. Afinal, os parlamentares buscam representar a diversidade do país, cada qual buscando promover os interesses de um segmento da população.
Este ambiente é adequado para a definição de direitos e deveres, a delimitação das prioridades nacionais e a distribuição de recursos, mas não é o mais indicado para zelar pela coerência sistêmica de um assunto técnico como sistemas elétricos.
Sistemas elétricos se assemelham a um complexo organismo, composto de múltiplos órgãos, cada qual especializado em uma função específica, operando de forma integrada, coordenada e interdependente para o benefício do conjunto. Neste contexto, não se pode tomar decisões voltadas a uma parte sem levar em conta os efeitos sobre as demais partes.
Portanto, há boas razões para separar as atividades legislativas das atividades executivas. Enquanto o Poder Legislativo busca formular leis contemplando os anseios de cada nicho da sociedade, o Poder Executivo – e, de forma ainda mais específica, as agências reguladoras – zelam pela administração do todo, considerando todos os agentes, incluindo os consumidores. Esta arquitetura institucional tem seu motivo de ser e precisa ser entendida e respeitada.
As consequências da legislação formulada para atender a interesses de grupos específicos ficam evidentes na expansão disfuncional da matriz elétrica e na concessão de benefícios, tais como:
- os descontos para classes de consumo custeados pela Conta de Desenvolvimento Energético – CDE (art. 13 da Lei 10.438/2002);
- o desconto na tarifa de transmissão e distribuição para geração proveniente de “fontes incentivadas” (art. 9º da Lei 13.360/2016); e
- a compensação dos serviços de distribuição concedidos à mini e microgeração distribuída (art. 26 e 27 da Lei 14.300/2022).
O efeito desta política tem sido a elevação contínua do custo de suprimento de energia e dos encargos setoriais inseridos na conta de energia elétrica para arcar com todos estes subsídios, descontos e compensações. O maior exemplo disto é a CDE, encargo cobrado dos consumidores de energia elétrica que soma mais de 32 bilhões de reais em 2024.
Desrespeito às boas práticas de tramitação
A legislação que afeta o setor elétrico deveria ater-se à definição de objetivos, à enumeração de princípios, e ao estabelecimento dos critérios a serem considerados na implementação das políticas públicas.
As boas práticas legislativas devem abranger não apenas o mérito das iniciativas legislativas, mas também a forma na qual os temas são apresentados, examinados e deliberados.
O Regimento Interno de ambas as casas do Congresso Nacional proporciona um bom rito para a formulação de novas leis. Existem comissões permanentes que avaliam as proposições apresentadas por parlamentares sob várias perspectivas. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, há a Comissão de Minas e Energia (CME), a Comissão de Finanças e Tributação (CFT) e a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), comissões que examinam as questões dos pontos de vista energético, orçamentário e jurídico, respectivamente.
Esta tramitação pelas diversas comissões foi concebida para assegurar o debate amplo e o exame minucioso da matéria sob diferentes óticas, minimizando o risco de se aprovar uma matéria com consequências inadvertidas.
O Regimento Interno também prevê prazos para o recebimento de emendas e a designação de relator responsável pela produção de um parecer sobre o projeto de lei a fim de instruir os membros da comissão antes da sua deliberação e votação. Este processo tende a ser demorado e trabalhoso, mas é crucial para assegurar a aprovação de uma boa legislação.
No entanto, torna-se cada vez mais comum a adoção de artimanhas para pular etapas. Uma das práticas mais comuns é a de introduzir emendas em Medidas Provisórias que já tramitam no Congresso, independentemente do tema tratado. São os chamados “jabutis” que aparecem nos “galhos” das Medidas Provisórias “não por enchente, mas por mão de gente”, como dizia o deputado Ulysses Guimarães.
Outra prática prejudicial é a do apensamento do projeto de lei a outro que já tenha passado por todas as comissões ou que esteja tramitando em Regime de Prioridade ou Urgência. Um exemplo recente desta prática é o do Projeto de Lei (PL) 624/2023, que foi para deliberação diretamente no Plenário da Câmara dos Deputados sem passar por nenhuma comissão prévia devido a um requerimento de urgência aprovado para outro projeto de lei apensado ao PL 624/2023.
A tramitação no Plenário também reflete a precariedade institucional envolvida nas muitas iniciativas legislativas encaminhadas na Câmara dos Deputados. O PL 624/2023 foi inicialmente colocado para deliberação na Sessão Deliberativa Extraordinária do dia 17/abr/2024, sendo que a pauta foi disponibilizada meros sete minutos antes de sua abertura às 13:55. E o que é pior: o Parecer Preliminar de Plenário a ser deliberado só foi disponibilizado às 15:31, ou seja, durante a sessão. Não bastasse esse atropelo, o relator submeteu uma nova versão do seu parecer às 18:08.
Diante do desconhecimento e da confusão, mesmo os aliados mais próximos mostraram receio em votar a matéria, o que levou o relator a solicitar a retirada do projeto da pauta do dia. O relator então apresentou duas outras versões do seu relatório nos dias 22/abr/2024 e 23/abr/2024. A matéria foi colocada em pauta para deliberação no Plenário novamente no dia 07/mai/2024. O mesmo deputado foi designado para apresentar os relatórios das três comissões (Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, CME e CFT). Seus relatórios propunham a aprovação da matéria na forma de um Substitutivo que alterava a redação original.
Algumas pessoas admiram a “maestria” destas artimanhas para fazer avançar proposições. Estas manobras certamente são celebradas pelos grupos que se beneficiam de seus “resultados” rápidos, mas no longo prazo estas práticas corroem o Poder Legislativo e a boa legislação, que vai se tornando cada vez mais incoerente, imprevisível e injusta.
O caminho das boas práticas legislativas
O processo de elaboração de uma lei que afeta o setor elétrico ou qualquer outro setor da economia deveria ser marcado pela deliberação ampla, aberta e transparente, sob um rito previsível que permita o pleno funcionamento do sistema de “freios e contrapesos” arquitetados para proporcionar maior segurança ao processo legislativo.
Obviamente este processo é frustrante devido à lentidão e ao trabalho envolvido na tramitação pelas comissões. Mas a solução não é evitar as comissões por meio de manobras e jabutis e, sim, impor mais disciplina ao processo, exigindo maior tempestividade tanto dos presidentes das comissões quanto dos relatores de cada projeto de lei.
É preciso que os parlamentares zelem pelo cumprimento dos ritos e das boas práticas legislativas. Só assim construiremos uma legislação sólida, justa e eficiente da qual se orgulhem os cidadãos de nosso país.
Richard Lee Hochstetler, Claudio Sales e Eduardo Müller Monteiro são Diretor Regulatório, Presidente e Diretor Executivo do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)