Congresso decreta o populismo tarifário?
06/mai/2022, Congresso em Foco
As eleições se aproximam e a fúria populista eleitoreira voltou com força total. No meio de uma recuperação pandêmica e com choques de preços afetando todos os setores econômicos e em todo o mundo, inclusive os setores elétricos nacional e dos demais países, o presidente da Câmara dos Deputados pautou, em regime de urgência, a tramitação de um Projeto de Decreto Legislativo (PDL 94/2022) que “proíbe” a aplicação de um reajuste tarifário autorizado pela Aneel para a distribuidora de eletricidade que atende ao Ceará.
Esse único ato pode, se não interrompido: (1) ferir de morte um ritual regulatório que levou décadas para ser construído; (2) instaurar um caos institucional no qual o Congresso passa a assumir papeis para os quais não está minimamente qualificado; e (3) prejudicar ainda mais os consumidores brasileiros, aqueles mesmos que nossos parlamentares alegam querer defender, ao acabar com toda a lógica econômico-financeira que dá sustentação a um setor da economia que atende a mais de 99% da população.
Quem calcula a conta de luz? Com base em qual critério?
A Aneel é a agência reguladora do setor elétrico responsável por calcular o nível adequado das tarifas de todas as distribuidoras de eletricidade nacionais. Esses cálculos não são triviais, muito menos improvisados: são resultado do trabalho sério de centenas de profissionais selecionados por disputadíssimos concursos públicos e altamente capacitados.
Esses técnicos calculam os níveis tarifários com base em metodologias extremamente sofisticadas que foram desenvolvidas ao longo de décadas e submetidas ao escrutínio de inúmeras consultas públicas e audiências públicas das quais qualquer cidadão pode participar.
Calcular tarifas de eletricidade é uma atividade que envolve dominar e aprovar formalmente técnicas que buscam: (a) simular um ambiente de competição entre as distribuidoras nacionais para que elas busquem constantemente a chamada “fronteira de eficiência” de seus custos operacionais para que a tarifa seja a menor possível; (b) repor continuamente e de forma prudente as bases de ativos (os equipamentos, fios, postes, transformadores) das redes elétricas para atender com qualidade os consumidores; e (c) remunerar os investimentos aportados nas redes de forma compatível com os custos de capital que foram alocados.
Todos os cálculos acima são documentados em mais de (literalmente) 1.400 páginas dos “Módulos do Proret – Procedimentos de Revisão Tarifária” e Manuais de Contabilidade que podem ser consultados a qualquer momento no site da Aneel, isso sem falar nas notas técnicas que antecedem as consultas públicas e nas planilhas que aplicam as metodologias a cada uma das distribuidoras para dar total transparência e reprodutibilidade ao processo.
Intervenção regulatória irresponsável
Ser transparente e reprodutível, no entanto, não é sinônimo de ser fácil. Exige dedicação e preparo, muito preparo. O detalhamento dado acima sobre a complexidade de regulação tarifária foi feito apenas para deixar bem clara a incoerência do conteúdo do PDL 94/2022 que tem (também literalmente) pouco mais de 2 páginas.
O curto e simplório texto proposto pelo deputado Domingos Neto (PSD/CE) não traz nenhuma justificativa técnica para defender a explícita intervenção regulatória – que, se for materializada, implicará uma quebra dos contratos de concessão – com generalidades como “o consumidor tem suportado altas constantes nas contas de luz diante de alterações das bandeiras tarifárias desde o advento da pandemia da COVID 19” e que “os consumidores brasileiros têm arcado com custos de energia elétrica cada vez mais crescentes”.
O texto apresenta também alguns cálculos comparando aumentos de tarifa com aumentos de inflação com janelas de tempo cuidadosamente selecionadas para maximizar as diferenças, mas sem mencionar a lógica de formação de tarifas, que não é baseada em lógica de inflação. Apenas para dar um exemplo, um dos componentes de custos que as distribuidoras apenas repassam nas suas tarifas é atrelado a custos de combustíveis para abastecimento das termelétricas que dão segurança de oferta para o consumidor. Basta ver que o que aconteceu com os combustíveis nos postos de gasolina de todo o mundo para entender como não faz sentido pensar em IPCA ou qualquer outro índice inflacionário para refletir um choque de preços global do qual o setor elétrico não consegue se blindar.
Temos, portanto, uma intervenção regulatória irresponsável que contrasta:
– de um lado, um processo longo, técnico e transparente que envolve 1.400 páginas e centenas de profissionais para definir a tarifa de uma distribuidora, tarifa essa que é a única fonte de receita da empresa; e
– de outro lado, 2 páginas sem nenhum argumento técnico ou jurídico para sustentar a canetada por decreto (como diz o próprio nome do Projeto de DECRETO Legislativo), e sem nenhuma proposta sobre como resolver o problema de um aumento tarifário que apenas repassa múltiplos choques de custo sobre os quais as distribuidoras não têm controle e que não as beneficia.
O texto apenas proíbe, de forma irresponsável e ditatorial, sem medir as consequências que fazem desmoronar as bases econômicas de um setor econômico que é 100% regulado e que é a infraestrutura essencial para todas as cadeias produtivas e de consumo da sociedade.
O real caminho para a desoneração
Cerca de 400 deputados foram muito rápidos e decididos para apoiar um texto que ignora a realidade, vendendo uma ilusão segundo a qual seria possível criar um universo paralelo no qual os consumidores de eletricidade brasileiros seriam os únicos do mundo a não sofrer as consequências dos desequilíbrios de custos globais sobre a energia que consomem.
Mas se os mesmos parlamentares realmente quisessem diminuir as tarifas de eletricidade no Brasil, eles poderiam tomar algumas medidas muito mais eficientes, a começar por reduzir a vergonhosa carga de tributos e encargos que respondem por metade da conta de luz: de acordo com estudo que desenvolvemos há anos em parceria com a consultoria PwC, 49,1% da receita das empresas do setor elétrico é composta por 9 tipos de impostos e 10 rubricas de encargos setoriais.
O maior imposto é o ICMS, que responde por 21% da conta de luz média nacional. Isso quer dizer que os governos estaduais são verdadeiros “sócios invisíveis” que têm-se beneficiado automaticamente – e silenciosamente – dos reajustes nas contas de luz. O mesmo silêncio reina no governo federal: IRPJ, PIS, COFINS e CSLL totalizaram 15% da tarifa elétrica e aumentam na proporção dos reajustes tarifários. Eis uma proposta concreta para o Congresso: por que não reduzir essas alíquotas para diminuir a tarifa final na proporção que mantenha a mesma arrecadação do ano passado?
Já o maior encargo (10% da conta) é a chamada CDE (Conta de Desenvolvimento Energético), que acaba de ser reajustada em 34% e totalizará R$ 32 bilhões em 2022, produzindo um impacto tarifário médio de 4%. Este encargo cobre iniciativas importantes como o programa de universalização, mas também abriga uma infinidade de subsídios que foram se acumulando ao longo do tempo na conta de luz por iniciativas dos próprios parlamentares para beneficiar grupos de pressão. O subsídio à geração térmica nos sistemas isolados – que cresceu 41,1% de 2021 para 2022 e responderá por R$ 12 bilhões – é o item com maior peso nas despesas da CDE e será repassado aos consumidores sem possibilidade de gestão pelas distribuidoras. Por que não acabar com alguns desses subsídios?
Ou seja, os governos federal e estaduais, que estão tendo seus cofres reforçados de forma completamente passiva, poderiam dar sua contribuição imediata para aliviar as tarifas elétricas. O mesmo vale para os parlamentares, que poderiam reduzir subsídios para diminuir a conta de luz sem quebrar contratos, sem passar por cima dos marcos legais e regulatórios e sem gerar um caos institucional.
Chega de populismo.
Claudio J. D. Sales e Eduardo Müller Monteiro são, respectivamente, Presidente e Diretor Executivo do Instituto Acende Brasil.