Consumidor escapa por pouco de outro jabuti na conta de luz

Data da publicação: 26/10/2022

26/out/2022, Broadcast Energia

Alguns de nossos congressistas parecem ter perdido totalmente sua inibição para causar insegurança jurídica e desrespeitar os ritos regulatórios construídos ao longo de décadas pelas autoridades que planejam, regulam e operam o setor elétrico brasileiro.

Os chamados “jabutis” legislativos – sorrateiras inserções de temas desconexos em projetos de lei, com base na atuação oportunista de grupos de pressão – deixaram de ser exceção e passaram a ser um pesadelo constante para os agentes de uma complexa cadeia de valor, composta pelas empresas geradoras, transmissoras, distribuidoras e comercializadoras de eletricidade e seus consumidores.

Há pouco tempo tivemos que assistir à vergonha que foi a inclusão de três categorias de jabutis na Lei 14.182, lei que tinha o importante objetivo original de tratar da privatização da Eletrobras, mas que acabou criando reservas de mercado injustificáveis para certas termelétricas (que nem sequer tem gasodutos), para pequenas centrais hidrelétricas e para o já desnecessário e anacrônico Proinfa (Programa de Incentivos a Fontes Alternativas).

Não bastassem os jabutis acima, estamos agora correndo o risco de ver um novo jabuti ser aprovado no Congresso a partir da Câmara dos Deputados para um tema diferente, mas usando os mesmos mecanismos opacos.

No dia de 20 de setembro a Aneel aprovou, por unanimidade, uma nova regra para a repartição dos custos de transmissão de energia entre os geradores e consumidores conectados no Sistema Interligado Nacional (SIN). O SIN consiste nas usinas de geração, linhas e subestações de transmissão que formam um sistema eletricamente integrado que cobre a maior parte do território brasileiro.

De forma simplificada, o serviço de transmissão pode ser visto como um condomínio do qual fazem parte geradores e consumidores. Este condomínio tem um dado custo a ser repartido e o objetivo principal da mudança é assegurar que dois princípios expressos em lei sejam mais adequadamente cumpridos:

1) deve pagar mais o agente que mais onera o sistema; e

2) deve ser estimulado o uso racional do Sistema Interligado Nacional.

A complexidade do tema fez com que a Aneel, desde 2018, realizasse uma tomada de subsídios e três consultas públicas, totalizando mais de 400 dias, nas quais agentes diversos puderam se manifestar tecnicamente sobre a regra que estaria sendo proposta.

Como parte do processo de consulta pública, a Aneel realizou também um conjunto de Análises de Impacto Regulatório (AIRs) nos quais foram tecnicamente avaliados, especialmente para os consumidores, os efeitos da regra que estaria sendo proposta.

O exame minucioso da Aneel evidenciou que a forma de cálculo atual, com foco regional (ou por “submercado elétrico”), distorce o sinal econômico e não considera que a configuração de nosso sistema elétrico mudou e muda ao longo do tempo, o que torna mais necessária a valorização do chamado “sinal locacional”, que busca promover a racionalização do uso dos sistemas elétricos.

Hoje, por exemplo, o consumidor de eletricidade no Nordeste – que tem sua demanda por energia amplamente atendida pela geração de usinas locais, demandando ou onerando pouco o sistema de transmissão –, paga mais pela transmissão do que o gerador que demanda ao máximo o sistema para exportar sua energia para outras regiões (ou submercados) do país.

A decisão da Aneel corrigiu esse problema ao mesclar o foco regional com o nacional para a repartição dos custos, e definindo uma transição gradual da seguinte forma:

– Atualmente:                    100% de foco regional e 0% de foco nacional;
– Daqui a 1 ano:                 90% de foco regional e 10% de foco nacional
– Daqui a 2 anos:               80% de foco regional e 20% de foco nacional
– …
– Ao final de 5 anos:          50% de foco regional e 50% de foco nacional.

Essa transição suave restabelece uma lógica econômica primária com base no fiel cumprimento pela Aneel de seu rito regulatório, que inclui estudos técnicos aprofundados, ampla discussão e contribuições por parte de agentes e consumidores, análise jurídica e total transparência na condução de todas as etapas do processo.

Causa, portanto, profunda indignação que, mais uma vez, tivemos a ameaça de se rasgar tudo isso a partir de uma emenda legislativa que foi minutada, proposta, votada e aprovada na Câmara dos Deputados em menos de 24 horas, dando mais um exemplo deplorável de um “jabuti” inserido em um comando legal que tratava de outro assunto.

Desta vez a ameaça não se concretizou por pouco graças ao Senado, que decidiu não votar o projeto e fez com que a Medida Provisória perdesse eficácia por decurso de prazo. Ajudou também a atuação do Senador Luis Carlos Heinze que apontou que “aquele jabuti era matéria estranha ao objeto” do comando legislativo em análise e que o jabuti “aumentaria a distorção de alocação de custos da rede básica [de transmissão de eletricidade], além de anular o esforço da ANEEL no sentido de ampliar o sinal locacional na transmissão.”

Toda vez que o desrespeito aos ritos e processos regulatórios acontece, o consumidor de energia paga a conta para que grupos de pressão que colocaram o jabuti colham um benefício injustificado.  A Aneel cumpriu muito bem seu papel, mas é fundamental que a sociedade apoie nossa agência reguladora em respeito à boa governança institucional, que mais uma vez foi arranhada pela iniciativa de um parlamentar.

Claudio Sales, Eduardo Müller Monteiro, Alexandre Uhlig e Richard Hochstetler são, respectivamente, Presidente, Diretor Executivo, Diretor de Assuntos Socioambientais e Sustentabilidade e Diretor de Assuntos Econômicos e Regulatórios do Instituto Acende Brasil. 

 

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