Crise do curtailment: desafios e soluções

O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) recorre ao curtailment para garantir o balanceamento entre a demanda e a geração quando não é possível equalizar os desequilíbrios por meio da programação do acionamento das usinas sob o seu comando
O Instituto Acende Brasil acaba de lançar a 18ª edição do “Programa Energia Transparente”, um estudo que avalia os fatos mais relevantes na operação e comercialização de energia elétrica no Brasil em 2024 (estudo disponível em: https://www.acendebrasil.com.br/estudos).
Entre os destaques do ano que se encerrou, vimos que o descasamento entre os perfis de produção e de consumo agravou o fenômeno de corte de geração (“curtailment”), algo que já vinha sendo observado no setor elétrico brasileiro (afetando primordialmente as usinas hidrelétricas, como tratado em detalhes na 17ª. edição deste estudo), e que em 2024 passou a impactar dramaticamente as fontes eólica e solar fotovoltaica.
O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) recorre ao curtailment para garantir o balanceamento entre a demanda e a geração quando não é possível equalizar os desequilíbrios por meio da programação do acionamento das usinas sob o seu comando.
Com a crescente participação de geração eólica e solar – e como a única forma de controle dessas fontes é por meio do corte ou redução da produção determinados pelo ONS –, o curtailment tornou-se muito mais intenso. Estes cortes de geração podem se dar por três principais motivos:
1. por indisponibilidade externa: devido a restrições do escoamento da energia ocasionadas por instalações de transmissão da Rede Básica de Transmissão que estejam fora de operação;
2. por confiabilidade elétrica: devido a limitações para assegurar a qualidade e estabilidade da rede; ou
3. por razão energética: devido ao desbalanço entre a carga e a geração (falta de demanda).
Um dos fatores que elevou a ocorrência do curtailment nos últimos anos foi a sobreoferta estrutural de energia elétrica resultante:
a) da frustração da demanda ocasionada pelas restrições impostas durante a pandemia covid-19;
b) do aumento exponencial da Geração Distribuída, que superou todas as projeções, inclusive aquelas feitas pela Aneel quando da criação de mecanismos tarifários para subsidiar esse tipo de geração; e
c) do crescimento da geração renovável não controlada impulsionada pela elevada contratação no Ambiente de Contratação Livre.
Mas há um ponto de inflexão claro no curtailment: agosto de 2023. A partir deste mês, há uma explosão dos cortes de geração eólica, especialmente por confiabilidade elétrica. A razão principal deste aumento foi a mudança na política operativa do ONS depois de um apagão ocorrido naquele mês.
De acordo com o Relatório de Análise de Perturbação do ONS, o evento se iniciou com o desligamento da Linha de Transmissão 500 kV Quixadá-Fortaleza II, ocasionada por uma atuação incorreta do sistema de proteção. O sistema deveria ser capaz de suportar este tipo de falha, mas a perturbação foi agravada pela forma de resposta dos equipamentos instalados nas usinas eólicas e fotovoltaicas.
O incidente demonstrou que a modelagem de transitórios eletromecânicos considerada pelo ONS não refletia adequadamente a efetiva capacidade de resposta destes equipamentos, que se mostraram menos robustos frente a perturbações na rede de transmissão. Dada a fragilidade da modelagem deste desempenho dinâmico, o ONS optou por adotar uma política operativa conservadora, que é a principal razão para a intensificação dos cortes desde então.
A modelagem de transitórios é um desafio enfrentado não apenas no Brasil, mas também em todos os sistemas em que a matriz elétrica passa a deter uma parcela relevante de geração com sistemas eletrônicos de conversão utilizados na geração eólica e solar fotovoltaica. Aliás, este tema é de “fronteira” para operadores de sistemas elétricos ao redor do mundo, sendo inclusive objeto de estudo de um grupo de trabalho do North American Reliability Corporation (entidade responsável pela elaboração de padrões e normas do sistema elétrico americano) formado em 2023.
No Brasil, o curtailment de janeiro a setembro de 2024 atingiu patamares nunca visto antes. Na média, cerca de 8% do potencial de geração eólica e cerca de 13% da geração solar foram cortados.
Mas é quando se examina o impacto sobre empreendimentos individuais que se percebe a real gravidade do problema. Como uma parcela relevante dos cortes está relacionada às instalações de transmissão, o fenômeno tende a ser concentrado em algumas áreas geoelétricas, atingindo mais severamente os empreendimentos localizados nestas áreas. Por exemplo, o Conjunto Eólico Aracati II sofreu um corte de 46% do seu potencial de geração entre janeiro e setembro de 2024. Já entre os empreendimentos solares fotovoltaicos, o conjunto mais afetado foi o de Banabuiu, que chegou a sofrer um corte de 52% do seu potencial de geração no mesmo período.
Os cortes de geração em 2024 têm resultado em custos bilionários arcados por geradores eólicos e fotovoltaicos para a reposição desta energia. Mas este não é o único impacto para estes geradores. Ao reduzir a produção efetiva destas usinas, o curtailment pode desencadear a redução da Garantia Física destes empreendimentos, o que limita o montante de energia que estes empreendimentos podem comercializar em contratos de longo prazo. Este efeito ameaça ainda mais a sustentabilidade econômico-financeira destes geradores.
Portanto, o curtailment nestes patamares poderá desencadear a quebra de geradores eólicos e fotovoltaicos.
Uma medida urgente para mitigar os efeitos dos cortes sobre esses geradores é prever o ressarcimento dos cortes por confiabilidade elétrica. Mas a solução definitiva para o problema do curtailment requer medidas estruturais que enderecem as raízes do problema.
Como observado anteriormente, uma das fontes do problema é o crescimento da Geração Distribuída, principalmente da minigeração e microgeração (MMGD), que é uma geração não controlável com perfil de produção horossazonal desalinhado do perfil horossazonal do consumo.
Uma medida que seria essencial e eficaz para evitar do agravamento do problema é exigir que novas usinas de MMGD sejam equipadas com inversores que possibilitem controle remoto pelas distribuidoras (que passariam a operar os sistemas locais para implementar o curtailment como o ONS faz com a geração centralizada). Este seria o começo do tão anunciado aumento do papel das distribuidoras, que passariam de DNO (Distributed Network Operators, ou operadoras de redes) para DSO (Distributed System Operator, ou operadoras de sistemas).
Embora não se possa aplicar o curtailment nos empreendimentos de MMGD já implantados (uma vez que estes projetos não possuem os dispositivos requeridos para tal gerenciamento), poder-se-ia prever o compartilhamento dos custos do curtailment por razão energética com estes agentes por meio de encargos.
Outra frente para se mitigar o agravamento do problema é a eliminação dos subsídios cruzados que têm impulsionado o crescimento destas fontes, seja com descontos nas tarifas de transmissão e distribuição (TUST/TUSD), seja pelos subsídios implícitos embutidos no Sistema de Compensação de Energia Elétrica para a MMGD.
Uma solução regulatória é necessária e urgente para tratar a reclassificação dos tipos de cortes e rever a estrutura de ressarcimento dos custos de curtailment. Mas apenas com a redução dos subsídios cruzados e a isonomia na aplicação dos cortes e na alocação de seus efeitos comerciais será possível estancar o agravamento dos desequilíbrios que dão origem ao curtailment.
A demora nas soluções só acentuará o problema do curtailment, ampliando seus custos, aprofundando a judicialização e a incerteza para empreendimentos novos e existentes, e afugentando investidores e financiadores.
Claudio Sales, Richard Hochstetler, Eduardo Müller Monteiro e João Cho são do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)