Desestatizar a Eletrobras sem privatizar a política energética

Data da publicação: 04/06/2021

04/jun/2021, Valor Econômico

A Câmara dos Deputados aprovou em 19 de maio a Medida Provisória 1.031/ 2021, que trata da desestatização da Eletrobras. O texto foi para o Senado (convertido para PLV 7/2021) e, como a Medida Provisória expira no dia 22 de junho, nossos senadores terão poucas semanas para corrigir as distorções introduzidas no texto original.

A desestatização é bem-vinda, mas…

A desestatização da Eletrobras é bem-vinda há muito tempo. Muitos estudos comprovam como a ocupação da estatal por políticos e seus aliados tem prejudicado a eficiência da empresa e destruído valor econômico para os contribuintes brasileiros.

Não deixa de ser irônico, portanto, termos que apontar as distorções de um texto que finalmente parece ter chance de ser aprovado e que poderia colocar a Eletrobras a serviço dos brasileiros, e não de certos grupos de pressão que se apropriam da empresa há décadas.

Reservas de mercado sem justificativas

O texto legislativo cria três reservas de mercado sem nenhuma justificativa conceitual e que afrontam o planejamento energético sistemático, que avalia custos e benefícios de todas as fontes de energia à luz dos requisitos do sistema. Tais reservas de mercado reduzem as pressões competitivas promovidas pela ampla concorrência entre fontes, o que é a essência para a redução do custo de geração de energia.

A primeira distorção é a imposição de uma contratação ultra direcionada que especifica: 1- o tipo de fonte de energia (geração termelétrica a gás natural); 2- a forma (via Leilão de Reserva de Capacidade); 3- a quantidade (6.000 MW); 4- a localização (dos 6.000 MW totais, 1.000 MW devem ser no Nordeste, 2.500 MW no Norte e 2.500 MW no Centro-Oeste); e 5- o prazo (15 anos).

O direcionamento injustificado continua com a segunda imposição: a prorrogação por 20 anos do Proinfa (Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia), programa instituído em 2002 pela Lei 10.438 que já cumpriu seu propósito e cujas usinas já foram amortizadas. Além da prorrogação desnecessária, a afronta chega na forma do preço, que será igual ao preço-teto do Leilão A-6 de 2019 corrigido pelo IPCA. Esses contratos deveriam simplesmente ser encerrados em seus prazos originais.

A terceira imposição é a contratação de Pequenas Centrais Hidrelétricas (ou PCHs, aquelas hidrelétricas com potência de até 50 MW) em volume equivalente a um percentual da demanda declarada pelas distribuidoras de eletricidade nos leilões regulados A-5 e A-6 de 2021, leilões que entregarão energia em 2026 e 2027 e que devem acontecer no fim de 2021. A dose do direcionamento impressiona: a contratação mínima será de 50% da demanda das distribuidoras até se atingir 2.000 MW, e “cairá” para 40% da demanda após ultrapassar os 2.000 MW.

Programas e compromissos que oneram o consumidor

Além das três reservas de mercado que encarecem a energia ao reduzir as pressões competitivas, o PLV 7/2021 também encarece a provisão de energia elétrica ao impor o custo de programas cujos objetivos vão além do interesse dos consumidores de eletricidade.

Tais programas – que têm sido interpretados como o “preço político” cobrado para diminuir as resistências à desestatização – atendem a três interesses ao custo total de R$ 8,8 bilhões nos primeiros dez anos.

O primeiro é voltado à revitalização dos recursos hídricos dos rios São Francisco e Parnaíba ao custo de R$ 3,5 bilhões (R$ 350 milhões por ano por 10 anos). O segundo visa reduzir custo de geração na Amazônia Legal ao custo de quase R$ 3 bilhões (R$ 295 milhões por ano por 10 anos). E o terceiro custará R$ 2,3 bilhões (R$ 230 milhões por ano por 10 anos) para promover a revitalização das bacias hidrográficas nas áreas dos reservatórios das usinas de Furnas.

O PLV 7/2021 também onera o consumidor ao prever pagamentos de bônus de outorga para a União, recursos que poderiam ficar no setor elétrico para reduzir a conta de luz, mas que irão para a União. O direcionamento do eventual excedente econômico da comercialização da energia de Itaipu para a União (25% do excedente) e para os três programas acima (outros 25% a partir do ano 2.032) também extrai recursos do consumidor de energia elétrica para outros fins.

O projeto ainda prevê uma contribuição associativa ao Cepel que acaba em seis anos. Essa seria uma boa forma de expor o centro de pesquisas da Eletrobras à dinâmica de mercado para que novas fontes de receita fossem buscadas por seu corpo técnico. Entretanto, o mesmo projeto permite que a estatal resultante da cisão de Itaipu e Eletronuclear faça contribuições ao Cepel; e prevê que a obrigação de aplicação em pesquisa e desenvolvimento da futura Eletrobras poderá ser atendida “por aporte em instituição de pesquisa vinculada ao setor elétrico reconhecida pela Aneel”. Seriam esses artifícios para criar fontes carimbadas – estatais e tarifárias – de recursos para o Cepel sem data para acabar?

As três reservas de mercado impostas no PLV 7/2021 são inaceitáveis e não têm nenhuma relação com a desestatização da Eletrobras. O planejamento energético no Brasil – que se baseia em estudos e simulações com um rito que deve ser respeitado – é feito por instituições tecnicamente capacitadas para este fim, como a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME). Não é papel do Congresso fazer planejamento energético.

Além do fim das três reservas de mercado acima, é preciso assegurar a eficácia e transparência dos três programas propostos (São Francisco, Amazônia Legal e Furnas) condicionando a liberação dos aportes anuais de recursos à aprovação, pelos órgãos de fiscalização, tanto dos projetos propostos (de forma prévia) quanto da prestação de contas dos projetos executados nos anos anteriores.

O Senado Federal tem a oportunidade e a obrigação de restabelecer os objetivos de desestatização da Eletrobras sem privatizar a formulação da política energética nacional, que não pode mais uma vez cair nas garras dos interesses econômicos de grupos políticos e seus aliados privados.

Claudio J. D. Sales, Eduardo Müller Monteiro e  Richard Hochstetler são, respectivamente, Presidente, Diretor Executivo e Diretor de Assuntos Econômicos e Regulatórios do Instituto Acende Brasil. 

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