Destaques e desafios do ano operativo 2020-19

Data da matéria: 03/09/2020

04/Set/2020, Canal Energia – O acompanhamento estruturado dos fatos mais relevantes da operação, da comercialização, da regulação e do planejamento do setor elétrico no Brasil é tarefa extremamente desafiadora, mas não impossível. O Programa Energia Transparente (PET) é uma das vertentes de trabalho do Instituto Acende Brasil que busca cumprir essa missão desde 2007.

O estudo é realizado anualmente, no final do período úmido, e sua 14ª edição engloba:
(i) uma análise retrospectiva da operação do sistema elétrico brasileiro;
(ii) destaques legais e regulatórios do período;
(iii) uma avaliação do planejamento da expansão;
(iv) um resumo sobre marcos atrelados à modernização do setor; e
(v) uma breve contextualização do impacto da covid-19 no setor elétrico.

A lista acima descreve a abrangência do estudo e, por limitação deste espaço, destacaremos aqui um dos temas abordados para exemplificar a interpendência analítica adotada e para estimular a leitura do documento, disponível em www.acendebrasil.com.br/estudos.

Discrepância entre os preços no Mercado de Curto Prazo e as condições hidrológicas

Um dos aspectos que chamaram atenção neste último ano operativo foi a aparente discrepância entre o comportamento dos preços no Mercado de Curto Prazo e as condições hidrológicas.

Do ponto de vista do mercado de energia, 2019 aparentou ser um ano de calmarias quando comparado a 2018. A média dos Preços de Liquidação de Diferenças (PLD) em 2019 foi de R$ 211/MWh, inferior à média do PLD em 2018, que foi de R$ 281/MWh. E o PLD apenas atingiu o seu limite teto uma única vez no ano (na terceira semana operativa de fevereiro, apenas nos patamares pesado e médio dos subsistemas SE/CO e S).

No entanto, esta “calmaria” no Mercado de Curto Prazo contrasta com as condições operativas verificadas no ano de 2019, que apresentou dois fatos preocupantes:

• O ano de 2019 apresentou a segunda pior hidrologia do histórico desde 1931 (medido pela Energia Natural Afluente do Sistema Interligado Nacional); e
• Os níveis dos reservatórios hídricos ao final de 2019 ficaram 9% abaixo dos observados ao final de 2018 (23% comparado a 32% da capacidade no ano anterior).

O que explicaria este descompasso entre as condições hídricas extremamente críticas e a relativa normalidade no mercado de energia?

O que observamos é que, em 2019, houve um aumento da “Geração Fora da Ordem de Mérito” para compensação futura de indisponibilidade de combustível (que passaremos a chamar de “GFOM para Compensação” neste artigo).

Uma vez que esta geração termelétrica não compõe a ordem de mérito dos programas computacionais, ela não é considerada para fins de definição do Custo Marginal de Operação (e, consequentemente o PLD), apesar de fornecer um recurso energético para o Sistema Integrado Nacional. Ressalta-se que este montante difere da Geração Fora da Ordem de Mérito para garantia energética, que é determinada pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) para garantir o suprimento energético nacional.

A GFOM por Compensação é um mecanismo para mitigar a penalidade aplicada para termelétricas que não atenderem a instrução de despacho pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) motivada por insuficiência de combustível. Este montante de geração, que foi regulamentado em 2006 e atualizado na Resolução Normativa nº 614/2014 da Aneel, permite que o agente termelétrico despache energia fora da ordem de mérito, por sua própria conta e risco, criando assim créditos para a compensação de futura penalidade por indisponibilidade de combustível desde que o montante gerado não resulte em vertimentos para reservatórios hídricos.

Diferentemente da energia termelétrica despachada por ordem de mérito que é remunerada pelo Custo Variável Unitário da usina (CVU) pelas distribuidoras de energia, a GFOM para Compensação é liquidada no Mercado de Curto Prazo ao PLD vigente em nome do agente termelétrico. Ressalta-se também que a compensação por esta GFOM para Compensação não exime o agente termelétrico das obrigações contratuais no mercado de energia quando este for chamado a gerar por ordem de mérito.

Já em 2020, observou-se uma boa recuperação nos níveis de reservatório, que chegaram a 60% da Energia Armazenada do SIN em junho de 2020. Esta recuperação decorreu principalmente da sobrecontratação da oferta, resultante da expansão contratada em leilões de energia em anos anteriores, quando havia uma expectativa de crescimento da carga superior à que se materializou desde então. E a frustração do crescimento da carga acentuou-se em 2020 com as medidas de distanciamento social adotadas para combater a pandemia da covid-19.

Este episódio mostrou como a atuação de setores sinergéticos ao elétrico mitigaram os efeitos negativos de uma das maiores crises hídricas dentro do mercado de energia. Os excedentes de gás natural foram aproveitados pelas termelétricas, que ajudaram a suprir o mercado de energia elétrica e evitar uma alta de preços do PLD num momento crítico.

Com a perspectiva de grande ampliação da produção doméstica de gás natural, principalmente na forma de gás associado (extraído juntamente com petróleo) e/ou advindo de plataformas marítimas, é de se esperar uma maior ocorrência de sobreoferta deste recurso. Assim, mecanismos como o GFOM para Compensação podem desempenhar um papel muito importante para promover uma maior flexibilidade ao atual mercado de gás natural e, ao mesmo tempo, beneficiar os consumidores de energia elétrica – como ocorreu neste último ano.

Mas é preciso avaliar cuidadosamente quais podem ser as implicações deste mecanismo nos próximos anos. Observa-se que até maio de 2020 foram registrados 11,5 TWh em créditos para a GFOM para Compensação, montante suficiente para atender a um quarto de toda a energia consumida no Sistema Interligado Nacional (SIN) naquele mês.

Conforme destacado na 14ª edição do Programa Energia Transparente, há várias iniciativas em curso para fomentar o desenvolvimento do mercado de gás natural, cujo amadurecimento é condição essencial para que haja maior coordenação entre os setores elétrico e de gás natural, resultando no melhor aproveitamento dos recursos e na mitigação de riscos.

Assim como essa análise, inúmeras outras são desenvolvidas em profundidade na 14ª edição do Programa Energia Transparente, sempre buscando estabelecer a interdependência dos problemas e soluções que definem nosso complexo – e apaixonante – setor elétrico brasileiro.

Claudio J. D. Sales, Eduardo Müller Monteiro e Richard Hochstetler são, respectivamente, Presidente, Diretor Executivo e Diretor de Assuntos Econômicos e Regulatórios do Instituto Acende Brasil.

 

Todos os direitos reservados ao Instituto Acende Brasil