Hora de aprimorar os leilões de energia

Data da matéria: 16/02/2024

Desde 2004, o setor elétrico brasileiro tem utilizado um sistema de leilões de energia para coordenar a expansão da geração e promover a competição no suprimento de energia elétrica aos consumidores que são atendidos pelas distribuidoras sob tarifas reguladas. Estes leilões têm muitos méritos, tendo proporcionado a segurança para a realização de investimentos em novas usinas, fomentado a concorrência, e facilitado o ingresso de novas empresas e de novas fontes de geração. No entanto, o sistema de leilões tem algumas imperfeições que precisam ser endereçadas.

A primeira imperfeição é que estes leilões segmentam o mercado de energia: (i) entre consumidores regulados e consumidores livres; e (ii) entre empreendimentos novos a serem construídos e empreendimentos de geração previamente instalados. Esta segmentação atravanca a comercialização de energia e distorce a concorrência, e responde por grande parte da sobrecontratação e subcontratação que regularmente assolam as distribuidoras de energia elétrica, elevando os custos de suprimento dos consumidores regulados que são atendidos pelas distribuidoras. A segmentação também prejudica os geradores mais antigos, que arcam com parcela desproporcional dos riscos de mercado.

A segunda imperfeição é a alocação assimétrica do custo dos recursos necessários para assegurar a garantia de suprimento do sistema elétrico. O governo assegura a instalação de geradores mais caros, que são necessários para manter a confiabilidade do suprimento, por meio das diretrizes estabelecidas nos leilões de energia utilizados para o atendimento da demanda dos consumidores regulados. A segurança proporcionada por tais usinas beneficia todos os usuários do sistema, mas o seu custo recai inteiramente sobre os consumidores regulados atendidos pelas distribuidoras.

A terceira imperfeição é que o sistema de leilões não leva em conta outros atributos, como a capacidade de ajustar a produção ao perfil horossazonal da carga de energia elétrica, pois consideram apenas o custo em reais por megawatt-médio (custo por unidade de energia) suprido.

O único fator atualmente considerado para resguardar a garantia de suprimento é a limitação da quantidade de energia que cada gerador é autorizado a comercializar: a chamada ´Garantia Física’, que é o montante máximo que a usina pode vender em contratos, dado o critério de suprimento estabelecido pelo governo. Esta abordagem – que era adequada quando o parque de usinas era predominantemente composto de hidrelétricas e termelétricas – apresenta severas lacunas no atual contexto, como explicamos abaixo.

A diversificação da matriz elétrica traz várias vantagens, mas também introduz novos desafios. Hoje uma parcela crescente da energia advém de geração eólica e solar, fontes cujo perfil de produção horossazonal é ditado pela disponibilidade do recurso (i.e., o vento e a irradiação solar) no local em que a usina é instalada. Este perfil de produção gera dois efeitos negativos: (i) reduz a proporção de usinas aptas a ajustar a sua produção à demanda por eletricidade em cada instante; e (ii) amplia a variabilidade da carga líquida de energia elétrica a ser atendida pelas demais usinas. Este descompasso vem crescendo ao longo do tempo e já começa a extrapolar a capacidade de ajuste do parque gerador implantado.

O atual sistema de leilões, estabelecido há 20 anos pela Lei 10.848 de 2004, precisa ser revisado. As autoridades estão conscientes destes problemas e, há anos, vêm discutindo formas para aprimorar o sistema de leilões, inclusive tratando – inicialmente via Consulta Pública 33/2017 do Ministério de Minas e Energia (MME) – da segmentação do mercado e da substituição do conceito de Garantia Física por um conjunto de “lastros” que levassem em conta outras dimensões. O Legislativo também vem debatendo iniciativas na mesma linha no Projeto de Lei 414/2021.

O tema foi retomado pelo MME na Consulta Pública 146/2022, em que se propôs a contratação simultânea de diversas formas de lastro nos leilões de energia e o estabelecimento de um Mecanismo de Cobertura de Exposições que: (i) proveria receitas suplementares para os agentes que disponibilizarem lastro além de suas obrigações; e (ii) exigiria pagamentos dos agentes que não disponibilizarem o montante de lastro contratado, sendo o preço do lastro definido em função da escassez observada em cada período de contabilização.

A abordagem proposta na CP 146/22 é promissora. A contratação de lastro promoveria uma expansão mais aderente aos requisitos do sistema elétrico e proporcionaria uma divisão de custos mais justa, ao ratear as despesas associadas à provisão de lastro necessário para assegurar a garantia de suprimento entre todos os consumidores por meio de encargo. E o Mecanismo de Cobertura de Exposições complementaria o sistema de contratação de lastro ex ante, com um sistema de bonificação e punição ex post com base no desempenho efetivo dos agentes.

A mesma CP 146/22 propõe dois tipos de lastro: (i) Lastro de Produção, visando à garantia de suprimento energético (no lugar do conceito de Garantia Física); e (ii) Lastro de Capacidade, visando à garantia da oferta de potência para atendimento da carga nos períodos mais críticos de cada mês. O primeiro é um instrumento para assegurar a confiabilidade de suprimento energético. O segundo é uma forma de proporcionar receitas adicionais necessárias para viabilizar as fontes aptas a atender determinados requisitos do sistema. A definição de ambas as formas de lastro precisa ser aprimorada, mas vão na direção correta.

O diagnóstico para tratar dos problemas é claro: requer a integração do mercado, eliminando as assimetrias entre geradores novos e existentes e entre consumidores regulados e livres, e uma delimitação mais apurada dos produtos para promover uma contratação mais alinhada aos requisitos do sistema.

Falta agora a vontade e a coragem para vencer as resistências naturais de alguns agentes e implementar os novos mecanismos de forma gradual e sem abalar a segurança jurídica.

Richard Hochstetler e Claudio Sales são Diretor Regulatório e Presidente do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)

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