Modelos e Eleições

Data da publicação: 17/02/2006

Mais do que modelos, o setor elétrico precisa formar e consolidar uma geração de líderes que valorizem princípios de eficiência

 

O que será que, do alto, assim eu vejo,

Veloz voando neste céu sem par?

Será que existem para o sertanejo

Barrentas praias de um barrento mar?

Eis um cenário tétrico e chocante:

Deserto imenso em que, a cada instante,

Vê-se o esforço do homem pr’a viver.

Neste trecho que sobrevôo agora

Lutou-se muito pr’a viver, outrora,

Ainda há sinais que se podem ver.

Mas, ao fletir a nave soberana

Ao norte, sobre a superfície plana

Imensa e triste do árido sertão,

Deparo, ao longe, sombras de arvoredos,

Manchas de vida perto dos rochedos,

Contrastes lindos nesta amplidão.

 

É o rio! É o rio! Vejo da janela

Da nave, em faixa nítida, amarela,

Cortando, sinuoso, a área imensa.

Talvez que a água seja um novo signo

De vida nova, de um futuro digno,

A renascer na adormecida crença.

Fábricas, ruas, campos cultivados,

Tudo surgirá nestes descampados

Já não mais inúteis para o sertão,

Quando a cachoeira for vencida

Nas turbinas e a água for vertida

Nos longos sulcos de irrigação.

Os trechos acima foram extraídos do poema “Voando para o São Francisco”, escrito, na década de 40, por Apolônio Sales, ex-ministro da Agricultura (pasta que à época englobava as responsabilidades hoje assumidas pelo Ministério de Minas e Energia – MME). Os versos tratam  da visão que inspirou os primeiros passos para a criação da Chesf. O rio é o São Francisco. A cachoeira é a de Paulo Afonso.

Tempos diferentes. Tempos de um Brasil menor. Tempos em que o país, iniciando sua trajetória de industrialização, não tinha capital privado suficiente para viabilizar obras de infra-estrutura. O Estado era a única resposta para grandes projetos. Escolha difícil para os governantes da época: empregar tanto capital, endividar-se naqueles níveis, num país com tantas carências, todas urgentes.

Hoje, verificamos poucas mudanças em relação aos cenários de mazela social lamentados há 60 anos pelo ex-ministro. É verdade que sempre se pode argumentar: se hoje o país é assim,  imagine como seria se os projetos pioneiros não tivessem sido empreendidos. Mas o mundo mudou. A população amadureceu e se tornou mais crítica em relação ao papel do Estado.

Em recente pesquisa de opinião conduzida por instituto independente, constatou-se o que a intuição já sugeria. Ao se perguntar quais são as funções do Estado, as respostas espontâneas apontaram três grandes áreas como vencedoras isoladas: saúde, educação e segurança. Importante repetir: saúde, educação e segurança. O povo quer que o Estado ofereça hospitais e médicos, escolas e professores, tranqüilidade para viver e ser um cidadão produtivo. Infra- estrutura (energia, telecomunicações, estradas) aparece em sexto lugar tanto nas respostas espontâneas quanto nas estimuladas.

Num mundo onde o que se espera dos governos é o atendimento às prioridades sociais, parece fazer muito sentido incentivar capitais privados a investir em infra-estrutura para aliviar a pressão sobre o caixa do Estado. É aritmética pura. Cada real investido numa linha de transmissão ou numa usina é um real a menos para saúde, educação e segurança.

Nosso quadro social não será estruturalmente melhorado pela maior participação estatal no setor elétrico. A história prova isso se observarmos os vários momentos pelos quais passou o setor: ora estatal, ora privado, hoje misto. A capacidade de desenvolvimento econômico e social de projetos de infra-estrutura não está ligada à origem do capital, e sim à qualidade do projeto.

O mesmo não se pode dizer dos investimentos estatais em educação. Vide Estados Unidos e Coréia do Sul e suas opções por “prioridade máxima à educação”. Os Estados Unidos garantiram  o acesso de todas as crianças à escola, com qualidade, há mais de 100 anos. Seu índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,939 coloca o país como 6º. no ranking mundial. A Coréia investe pesado em educação há trinta anos e suas políticas governamentais têm incentivado as famílias sul-coreanas a instilar em seus jovens a certeza de que a educação é o único caminho para a inserção digna num mundo cada vez mais competitivo. Sábia escolha que tem mostrado resultados incontestáveis. Hoje, os indicadores coreanos estão se alinhando muito rapidamente aos países mais ricos. Seu IDH já é de 0,882, posicionando o país como 26º. no ranking mundial. O Brasil, com um IDH de 0,757, ocupa a 70ª. posição.

Diante desses fatos, é preocupante observar que os sinais para atração de investimentos privados no setor elétrico brasileiro ainda sejam tão débeis. Se somarmos à ausência desses sinais a constatação de que mais da metade dos R$ 20 bilhões anuais necessários para a expansão do setor (entre geração, transmissão e distribuição) deve vir de agentes privados, concluiremos que há grandes chances de razões ideológicas estarem produzindo essa conjuntura que, na melhor das hipóteses, aumentará o custo da energia e que, na pior das hipóteses, comprometerá o abastecimento e o crescimento do país.

As eleições de 2006 estão batendo à nossa porta. Como representante dos investidores privados no setor elétrico, já percebo a grande movimentação nos conselhos de administração das empresas para refletir em seus planejamentos estratégicos as análises dos possíveis cenários que se seguiriam a outubro de 2006.

As preocupações dominantes consolidam-se na pergunta: é viável, para modelos de negócio de longo prazo como o de energia elétrica, construir um posicionamento empresarial que seja “robusto” em relação aos resultados eleitorais? Ou seja: é possível, qualquer que seja o candidato vencedor, manter uma condição empresarial de razoável previsibilidade para que os investimentos bilionários já feitos, e os outros tantos que se pretende fazer, não sejam inviabilizados por fatores políticos?

Minha resposta: qualquer que seja o governante de 2007 a 2010, precisamos, agentes privados e estatais, apoiar a construção de um ambiente com solidez institucional onde as tentadoras soluções mágicas sejam abandonadas.

Não precisamos de um “novo-novo modelo” que substitua o “novo modelo” que veio em resposta à crise de 2000/2001. Precisamos definir e defender princípios atrelados ao conceito de eficiência e, principalmente, construir uma geração de líderes que os respeitem e implementem. Sem malabarismos e sem artificialidades.

Como diz Guy Kawasaki, um dos grandes líderes empreendedores do Vale do Silício, grandes idéias são fáceis de se ter. O difícil é implementá-las. Exemplo de uma grande idéia: construir um sistema operacional que seja amigável, imune a erros e barato. A idéia é toda sua! Vamos lá! Construa-o! O mesmo se pode dizer de grandes modelos energéticos. O difícil é implementá-los. E precisa-se de tempo para consolidá-los e ajustá-los aos obstáculos que inevitavelmente surgirão.

Os tempos de maturação do nosso setor não permitem tamanha volatilidade na política energética. O modelo que definiu o início da privatização em 1994 – e que estabeleceu as bases para os investimentos privados – mal tinha sido implementado e já fomos surpreendidos por um novo modelo em 2003/2004. Um dos resultados de tanta instabilidade foi a total paralisação dos investimentos. Há 33 meses não se inicia nenhum projeto relevante de construção de novas usinas. Os cenários apontam – admitidas algumas premissas de entrada em operação de empreendimentos e de oferta de gás natural – para o encontro das curvas de oferta e demanda a partir de 2009. Em cenários menos otimistas, em 2008 já teríamos um aumento considerável do risco de crise de oferta de energia.

Os agentes precisam agora de estabilidade e de sinais eficientes. Eficiência aqui se traduz em alguns princípios de simples definição, mas de difícil execução: redução da carga tributária, competição sem reservas de mercado, tarifa imune a ataques populistas, agência reguladora com autonomia institucional e financeira, competição e parcerias responsáveis e transparentes entre estatais e privados, segurança jurídica.

O próximo governo, qualquer que seja sua inclinação político-ideológica, deveria concentrar-se na lista acima. Ela traduz, de maneira sintética, o caminho em direção à eficiência. O  grande problema é que a lista não oferece muitos símbolos de uso eleitoral. A lista não cede espaço a “projetos estruturantes”, “energias novas e energias velhas”, “preços de reserva”.  Ela simplesmente respeita a racionalidade e os mais básicos princípios da macro e microeconomia.  Os votos só virão no longo prazo, com a produção da energia mais barata, com a segurança de oferta e, principalmente, com a liberação de recursos para as áreas prioritárias (saúde, educação e segurança).

Não temo afirmar: se os formuladores dos planos de governo para o setor de energia dos candidatos às eleições de 2006 respeitarem esses princípios e os tornarem explícitos nos seus discursos, seremos premiados com o período mais longo e intenso de desenvolvimento que o setor elétrico já vivenciou. Teremos uma transição política serena e que beneficiará a todos: consumidores, investidores e governo. Com a palavra os formuladores.

Claudio Sales é presidente da Câmara Brasileira dos Investidores em Energia Elétrica.

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