O enfraquecimento dos reguladores federais de energia

Data da matéria: 19/12/2023

As agências reguladoras federais do setor de energia – tanto no setor de energia elétrica, na figura da Aneel, quanto no setor de óleo e gás, na figura da ANP – têm sofrido sucessivos ataques à sua atuação e jurisdição.

Exemplos não faltam, e é preciso que a sociedade fique alerta para que essa tendência não comprometa duas décadas de árdua construção dessas autoridades que são essenciais para dar segurança jurídica aos investimentos, blindar os setores regulados de uso político, e proteger a tarifa paga pelos consumidores de ações de lobbies oportunistas.

No setor elétrico, a interferência do Congresso sobre atividades da Aneel – em casos como o marco da Geração Distribuída, o drama do Sinal Locacional e as constantes tentativas individuais de parlamentares para “suspender” revisões tarifárias – atropela anos de discussão técnica e deslegitima o regulador federal.

Ainda no setor elétrico, o recente PL 11.247/2018 – aprovado na Câmara em regime de urgência no dia 29/nov e enviado para o Senado no dia 07/dez como PL 5.932/2023 – é um show de horrores de subsídios e distorções que ignoram a existência da Aneel e de outras autoridades do setor elétrico e transferem bilhões de reais dos consumidores de eletricidade para os bolsos de lobbies super bem articulados. Tudo feito sem a necessária Análise de Impacto Regulatório, instrumento desenvolvido pela Aneel que deveria preceder qualquer legislação que impacte a tarifa de eletricidade.

No setor de gás natural, a ANP também enfrenta desafios, e a maior ameaça do momento emana – surpreendentemente – do regulador estadual de gás de São Paulo, a Arsesp, que tem insistido em trilhar perigoso caminho de invasão da autoridade federal da ANP.

A afronta do regulador estadual à legislação federal se arrasta desde 2019 e ficou tão forte que a ANP decidiu abrir a Consulta Pública 10/2023 para buscar solução para a equivocada decisão da Arsesp de invadir as atribuições da ANP e classificar o Gasoduto Subida da Serra como gasoduto de distribuição, autorizando sua inclusão no plano de investimentos da Comgás, distribuidora local de gás canalizado em São Paulo.

O Subida da Serra é um ativo incorporado à base de ativos da Comgás – e, portanto, financiado pelo consumidor de gás paulista – com características claras de gasoduto de transporte e, portanto, sua regulação cabe à ANP. Segundo a Constituição Federal, o transporte de gás natural é monopólio da União (Art. 177) e, segundo a Lei do Petróleo (Lei 9.478) que criou a ANP, a agência federal é competente para regular e fiscalizar as atividades de gás natural, com plena autoridade para regular gasodutos de transporte.

Após a decisão da Arsesp – prontamente contestada pela própria ANP e por outras autoridades como o Ministério da Economia, o Ministério da Justiça/Cade e a Advocacia Geral da União, além de agentes do setor e associações – o governo do Estado de São Paulo assinou o Decreto 65.889/2021 na tentativa de legitimar a atuação da Arsesp, definindo critérios de classificação de gasodutos de distribuição de gás canalizado que permitiriam que o Gasoduto Subida da Serra fosse classificado como gasoduto de distribuição.

O que se viu após as iniciativas da Arsesp e do Governo de São Paulo foi o espalhamento do “bypass” da rede de transporte para outros estados da União, com leis e decretos estaduais que ferem a jurisprudência federal da ANP.

O nocivo efeito dominó iniciado no estado de São Paulo está se propagando e é preciso ser contido com firmeza pela ANP, que sinalizou em sua reunião de diretoria de 23 de novembro que recorrerá ao Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar a constitucionalidade de leis e decretos estaduais que visam a regular aspectos do mercado de gás que competem à ANP.

Os efeitos negativos e o risco de propagação do bypass para outros estados foram apontados por várias organizações na Consulta Pública 10/2023. O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), por exemplo, destacou que “um problema potencial advindo da possibilidade de o Gasoduto Subida da Serra substituir a malha de transporte é que isso ocorreria em condições regulatórias não isonômicas, prejudicando a comparabilidade dos projetos e a escolha do mais eficiente”. O mesmo MDIC lembra que há uma racionalidade econômica em distinguir a distribuição e o transporte quando lembra: “A racionalidade econômica da lei em distinguir as atividades de distribuição e transporte é para evitar o ´bypass´ desta última.”

Já a Federação das Indústrias do Estado do Paraná (FIEP) lembrou do risco de propagação do ´bypass´ para outros estados: “Entendemos importante também a ANP considerar o efeito que a exceção criada sobre este caso possa ter sobre os demais entes da federação. O efeito seria em cascata, direcionando o sistema de gás para uma espiral da morte”.

A lógica que define papeis e responsabilidades dos agentes do mercado de gás natural, uma análise dos efeitos danosos da classificação do Gasoduto Subida da Serra como ativo de distribuição, e contribuições para a Consulta Pública 10/2023 são detalhadas no estudo “O Fenômeno Bypass, a Desintegração do Mercado de Gás Natural e seus Impactos” (disponível em www.acendebrasil.com.br/estudos).

Um mercado integrado de gás natural amplo, aberto e interligado pelos gasodutos de transporte que conectam a oferta e a demanda beneficia todas as distribuidoras e os consumidores de forma isonômica, não discriminatória e transparente, garantindo a cada um o atendimento às suas necessidades específicas em melhores condições comerciais.

A conclusão da Consulta Pública 10/2023 ainda não foi apresentada pela ANP. Portanto, esta é uma grande oportunidade para que a ANP delimite claramente a preponderância da sua jurisdição federal frente à Arsesp e a outros reguladores estaduais, evitando assim novos casos de bypass da rede de transporte de gás natural e colocando o interesse dos consumidores brasileiros – que serão beneficiados por um mercado nacional integrado de gás natural – acima de todos os demais interesses.

Eduardo Müller Monteiro e Claudio Sales são Diretor Executivo e Presidente do Instituto Acende Brasil

Fonte: https://www.canalenergia.com.br/artigos/53266309/o-enfraquecimento-dos-reguladores-federais-de-energia

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