O papel da Aneel no novo mandato
Temas relevantes do setor elétrico brasileiro têm sido afetados negativamente pela ocupação por grupos de pressão no Congresso Nacional. Esta ocupação sem precedentes, além de gerar vantagens e privilégios econômicos, tem esvaziado funções cruciais do Ministério de Minas e Energia (MME, responsável pela formulação de políticas do setor) e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE, responsável pelas diretrizes do planejamento de longo prazo).
As surpreendentes canetadas de alguns parlamentares – que envolvem poucas linhas orquestradas na surdina e inseridas como jabutis em outros comandos legais – desarranjam a lógica por trás de anos de trabalho de planejamento sério e regulação meticulosa, tudo isso sem passar pelo escrutínio do debate público.
É por isso que talvez a função mais importante da Aneel nos próximos quatro anos será colocar luz sobre a necessidade de se promover uma política energética coesa e que não dê mais espaço para o loteamento político e econômico.
A recente recomposição da diretoria da Aneel – que teve 4 de seus 5 diretores reconduzidos ou empossados entre maio e agosto, sendo que em dezembro a quinta cadeira também será ocupada por uma profissional com as qualificações adequadas – oferece oportunidade ímpar para posicionar a Aneel na altura prevista pela jovem Teoria da Regulação, segundo a qual o regulador deve se comportar como uma entidade de Estado – e não de governo – blindada de interferências políticas e capaz de reconhecer e rechaçar pressões econômicas desalinhadas do interesse público.
A nova “geração” do corpo diretivo da Aneel poderia desenhar sua atuação nos próximos quatro anos com a missão de liderar intelectualmente algumas frentes prioritárias.
A primeira frente envolve a recuperação da governança institucional no setor elétrico, com destaque para acabar com duas distorções emanadas do Congresso: (a) jabutis de parlamentares que decidem arbitrariamente quais usinas devem ser instaladas em qual lugar do país, um “tapa na cara” do planejamento feito pelo MME e pela EPE; (b) projetos de decreto legislativo impostos por congressistas que sustam reajustes tarifários, um outro tapa, mas desta vez na cara da própria Aneel, que tem a missão de calcular tecnicamente os níveis tarifários com base nos contratos de concessão.
Não será fácil “peitar” alguns membros do Congresso, mas a Aneel ajudará a aprimorar a governança no setor elétrico se der publicidade para subsídios ou benesses que prejudicam o consumidor. Algo como: “sociedade brasileira, veja o que este parlamentar está propondo e entenda as consequências dessa interferência sobre a tarifa que você paga e sobre a energia que você consome”.
A segunda frente a ser priorizada pela Aneel é o aprofundamento de seu esforço para a desoneração estrutural das tarifas, mas sem artificialidades. Nessa dimensão, as ações mais importantes são: (a) comunicar de forma didática para os brasileiros os principais elementos de pressão tarifária; e (b) apoiar iniciativas de redução sustentável da conta de luz.
Após as grandes vitórias de redução da alíquota e da base do ICMS sobre eletricidade, os próximos alvos nessa frente devem ser a redução de subsídios injustificáveis embutidos no encargo CDE (Conta de Desenvolvimento Energético) e a diminuição da tarifa de Itaipu, cuja renegociação acontecerá em 2023 com o Paraguai. Aliás, pensando em tarifas eficientes, merece aplausos a recente decisão da diretoria da Aneel de revogar as outorgas de quatro termelétricas que não cumpriram as obrigações assumidas no leilão emergencial de outubro de 2021 (Procedimento Competitivo Simplificado) e que poderiam custar aos consumidores, sem necessidade, bilhões de reais.
Uma terceira frente é garantir que a abertura do mercado varejista seja bem planejada e equilibrada, evitando uma desnecessária disputa tóxica entre mercado regulado e mercado livre de energia nos moldes do vergonhoso “Fla-Flu” que foi a rixa regulatória envolvida no marco da geração distribuída. É papel do regulador cortar na raiz “fake news” como a infame “taxação do sol”.
E pensando na transição energética, uma quarta frente envolve ter nosso regulador como um aliado do MME, da EPE e do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) na defesa de políticas tecnologicamente neutras: não importa a fonte de energia, e sim os requisitos atendidos pela fonte, sempre por meio de competição isonômica. A transição também seria turbinada se a Aneel apoiasse a modernização das redes de transmissão e distribuição via regulamentação para adoção de redes inteligentes e fomento da medição digital e cibersegurança.
As quatro frentes acima constroem um caminho promissor para que Aneel seja uma agência cada vez mais forte e respeitada com base nos atributos de transparência, rigor técnico e bloqueio do loteamento político e econômico do setor elétrico.
Eduardo Müller Monteiro e Claudio Sales são Diretor Executivo e Presidente do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)