Os irmãos gêmeos e a competição entre estatais e privados

Data da matéria: 28/04/2006

Eustáquio e Protásio nasceram no mesmo dia. Protásio quatro minutos mais tarde. Gêmeos idênticos. Brincaram juntos, ouviram dos pais os mesmos princípios e receberam as mesmas oportunidades. Freqüentaram as mesmas escolas. Passaram no mesmo vestibular. Formaram-se no mesmo dia, no mesmo curso.

A separação veio quando buscaram o primeiro emprego. Eustáquio, via concurso, passou a trabalhar numa estatal do setor elétrico. Protásio preferiu o ambiente de mercado e conseguiu uma posição numa empresa privada, também do setor elétrico.

Vinte anos depois, trilhando caminhos bem diferentes, o reencontro profissional inusitado. Eustáquio (presidente de uma estatal geradora) discutia com Protásio (presidente de uma geradora privada) a estratégia do consórcio que procuravam viabilizar para assumir a construção de uma usina que seria disputada num leilão de energia.

No leilão, venceria a empresa ou consórcio que oferecesse o menor preço pela energia que seria gerada pela futura usina. O clima no domingo que antecedeu ao leilão – que aconteceria numa segunda-feira – não foi dos mais leves. Os dois executivos estavam visivelmente cansados. Quais os incentivos de cada um dos executivos? A quem respondiam? Quais as funções que buscavam maximizar?

  • … mas, Eustáquio, com esse preço eu não consigo nem cobrir o meu custo de capital. Meu conselho de administração me demitirá no dia ..
  • Você está sendo muito “contador”. Seja mais “estratégico”. Tudo bem que o retorno não seja lá essas coisas, mas o que importa é tocar essa usina para frente, movimentar as empresas, contratar fornecedores. E, além de tudo, gerar energia para o Brasil!
  • Talvez o drama seja menos intenso para você porque estatal não vai à falência (a madrinha cobre o rombo) e você não perde seu emprego. De qualquer maneira, você, às vezes, se pergunta a quem pertence o dinheiro que você gerencia?
  • As estatais? As estatais pertencem ao povo!
  • Prefiro dizer que pertencem ao Estado brasileiro, que investiu durante décadas dinheiro do contribuinte para construir os ativos que hoje você administra com a responsabilidade de ser eficiente. Se você entrar no projeto já assumindo uma taxa inferior ao seu custo de capital, não estará cumprindo com seu dever de administrador público.
  • Eu já prefiro cumprir meu dever de cidadão e ter a coragem patriótica de investir com menor retorno e garantir a energia para o povo ..
  • Patriotismo com dinheiro alheio é fácil, né?

E o debate foi adiante.

No dia seguinte, a estatal assumiu sozinha o projeto e Eustáquio fez declarações orgulhosas à imprensa sobre seu patriotismo. Protásio, entrevistado sobre sua desistência do consórcio com a estatal, tinha apenas a mesma mensagem tediosa de sempre para explicar sua decisão: responsabilidade, realismo, sustentabilidade, racionalidade, respeito aos acionistas.

A Eletronorte fechou 2005 com prejuízo de R$ 323 milhões. Em 2004, o resultado negativo foi de R$ 1 bilhão. Há 10 anos opera no vermelho. Apesar disso, prevê investir R$ 607 milhões no sistema de transmissão em 2006. Seria possível conceber uma empresa privada operando por 10 anos com prejuízos? E, com esses resultados, qual conselho de administração privado aprovaria mais investimentos?

O quadro institucional atual do setor elétrico brasileiro apresenta um desafio para os formuladores de políticas públicas: como promover competição isonômica e, no caso como o descrito, parcerias racionais entre estatais e privadas, quando os sinais econômicos e os incentivos gerenciais são tão diferentes para cada um dos atores?

Em nenhum momento estamos falando de desonestidade ou de má-fé de administradores públicos. Estamos apenas apontando uma realidade, ilustrada em seu extremo pela situação dos gêmeos: mesmos valores, mesma educação, mesmos princípios. Mas inseridos em sistemas institucionais e mecanismos de punição e recompensa muito diferentes.

Enquanto não houver uma solução baseada em governança corporativa e transparência de objetivos econômicos para as estatais, continuaremos a conviver com uma invenção bem brasileira: a TPR – Taxa Patriótica de Retorno, indicador adotado pelas estatais para justificar suas decisões que destroem valor.

Claudio Sales é presidente da Câmara Brasileira de Investidores em Energia Elétrica. A CBIEE representa os 15 maiores investidores privados, responsáveis por 66% da distribuição e 28% da geração de energia no país.

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