Repensando o papel do congresso no setor elétrico

Data da matéria: 18/05/2023

Qual deveria ser o papel de nossos senadores e deputados federais na definição dos rumos do setor elétrico? Sugerimos que esta pergunta seja respondida a partir dos interesses dos milhões de eleitores que os colocaram em seus mandatos. A partir desta perspectiva é possível analisar as consequências das escolhas passadas recentes que têm sido feitas pelos membros do Legislativo e, o que é mais importante, quais deveriam ser as diretrizes para atuação do Congresso olhando para o futuro.

Nos últimos anos podemos documentar um crescente engajamento de membros do Congresso Nacional em temas que afetam consumidores e empresas do setor elétrico. Em uma primeira leitura, isso poderia ser interpretado de forma positiva, pois revelaria interesse do mundo político por um setor que atende a 99% da população (eletricidade é o serviço público mais universalizado no Brasil) e que impacta todas as cadeias de consumo e de produção.

Mas essa interpretação rapidamente se altera quando observamos a forma como esse engajamento tem acontecido e quais são os reais interessados em várias das recentes atuações de parlamentares. Exploremos essa vertente, demostrando como várias das iniciativas têm sido desnecessárias, além de conflitantes com outras autoridades e prejudiciais aos brasileiros comuns.

Não é atribuição do Congresso fazer planejamento do setor elétrico e nem definir suas tarifas, mesmo porque o Congresso não tem estrutura para desempenhar tais funções, que exigem conhecimentos altamente técnicos e especializados. Isso implica que muitas das iniciativas do Congresso são desnecessárias porque já há várias outras autoridades responsáveis para cuidar de diferentes aspectos técnicos, operacionais e regulatórios que compõem o mundo real do setor elétrico.

De acordo com a Lei 10.683, promulgada em maio de 2003 pelo próprio Congresso, a definição de políticas públicas do setor elétrico é atividade do Ministério de Minas e Energia, que conta com estrutura e profissionais que dão suporte ao Ministro, incluindo a Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE), autoridade sediada no Rio que conta com centenas de profissionais que planejam o futuro do setor e produzem os Planos Decenais de Energia e Planos Nacionais de Energia, documentos com as diretrizes técnicas que pautam a expansão da matriz elétrica.

Isso quer dizer, de forma simplificada, que é possível justificar, com base em estudos técnicos, a quantidade e natureza das usinas que precisam ser construídas em nosso país para atender ao consumo futuro de forma eficiente e com base na competição promovida por meio de leilões organizados pelo governo, leilões que definem como vencedores as usinas que entregam energia mais barata aos consumidores.

É por isso que causou espanto a inserção de três jabutis na Lei 14.182 (lei promulgada em 02/jul/2021 e que desestatizou a Eletrobras) que impuseram de forma arbitrária e sem nenhum estudo: (a) a construção de 8 GW de termelétricas a gás, no N, NE e CO, em regiões sem gasodutos; (b) uma reserva de mercado para Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) de 50% da demanda até se atingir 2 GW; e (c) a prorrogação do Proinfa (programa concebido em 2002 para incentivar a inserção de PCHs, termelétricas a biomassa e eólicas) por 20 anos para fontes de energia que não precisam de incentivos há muito tempo.

Assim como não é papel do Congresso definir a matriz elétrica, também não é papel do Congresso definir as tarifas de eletricidade porque há uma agência reguladora (a Aneel) criada para, entre outras tarefas, calcular tecnicamente os níveis tarifários adequados para as diferentes classes de consumidores de acordo com os contratos de concessão e com regras construídas pela Aneel. Para se ter uma ideia, as metodologias tarifárias expressas no chamado Proret (Procedimentos de Regulação Tarifária) demoraram anos e envolveram dezenas de audiências públicas que contaram com milhares de contribuições da sociedade até serem consolidadas.

É por isso que também causam espanto iniciativas parlamentares que buscam, por canetadas sem análises de impacto tarifário, estabelecer subsídios e benesses para alguns consumidores, sem dar transparência sobre o custo adicional gerado para os demais consumidores. E aqui temos de tudo, começando por dezenas de Projetos de Lei “no varejo” que buscam, por exemplo: (a) criar tarifa social para hospitais; (b) proibir corte de energia de consumidores inadimplentes; (c) conceder descontos para energia usada em irrigação; e (d) sustar reajustes tarifários calculados pela Aneel. Todas são iniciativas simpáticas para os beneficiados (daí o seu amplo uso por parte dos parlamentares), mas que, se aprovadas, geram sobrecusto para os demais consumidores.

Além das iniciativas “no varejo”, há também iniciativas mais sofisticadas e coordenadas que beneficiam grandes investidores em fontes específicas de energia por meio de subsídios tarifários implícitos ou explícitos como, por exemplo: (a) a extensão de descontos sobre as tarifas de uso das redes elétricas para instalações de Geração Distribuída (Lei 14.300 de 06/jan/2022); (b) a tentativa de reversão do chamado “sinal locacional” (regra desenvolvida pela Aneel que consumiu mais de 400 dias e quatro audiências públicas para equilibrar o pagamento das tarifas de transmissão de eletricidade) via PDL 365, que felizmente não avançou no Senado até agora; e (c) a ameaça de construção do chamado Brasduto para subsidiar o setor de gás natural com recursos do setor elétrico (um subsídio cruzado entre setores sem nenhuma lógica, mas com interesses bem mapeados).

O Professor Gary Becker, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 1992, elaborou a Teoria de Grupos de Pressão para modelar matematicamente como atuam os chamados SIG (Special Interest Groups). De forma simplificada, dois corolários dessa teoria nos ajudam a entender a dinâmica que opera em Brasília: (1) grupos de pressão atuam sobre o meio político para diminuir seus impostos e aumentar seus subsídios; e (b) os grupos de pressão que são beneficiados têm mais incentivos para atuar porque as vantagens que obtêm são concentradas, enquanto os grupos prejudicados têm incentivos menores, pois os efeitos negativos sobre estes são muito dispersos. Em outras palavras, os lobistas disparam na frente porque não há representantes bem definidos para defender os demais cidadãos de suas investidas.

A pergunta que fica é: em vez de atender aos pedidos dos grupos de pressão, o Congresso Nacional não deveria ser a instituição que protege os consumidores não representados? É óbvio que a resposta é sim. O Congresso deveria cuidar dos interesses gerais da população ou dos consumidores comuns brasileiros, e não desse ou daquele investidor que não precisa de subsídios para desenvolver seus negócios, alguns deles já extremamente lucrativos.

A boa notícia é que essa mudança de postura é simples. Basta que cada iniciativa parlamentar que impacta o setor elétrico seja precedida de uma consulta às autoridades elétricas já existentes. Se for afetar a expansão da matriz, qual a opinião do MME ou da EPE? Se for impactar tarifas ou conceder descontos ou subsídios, qual a opinião da Aneel?

Enquanto não houver essa disciplina do Congresso, continuaremos a ver um setor elétrico que desrespeita instituições, despreza ritos legais e regulatórios e machuca o bolso dos consumidores.

Eduardo Müller Monteiro e Claudio Sales são Diretor Executivo e Presidente do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)

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