A resposta do setor à catástrofe gaúcha

Data da matéria: 17/05/2024

Enchentes impactam na operação de ativos de GTD. Restabelecimento do fornecimento é prioridade, mas day after trará debates sobre soluções e caminhos

Devastado por enchentes que começaram no fim de abril e ainda perduram, o Rio Grande do Sul passa por sua maior tragédia climática. Com a maior parte do território inundada, mais de uma centena de mortos e milhares de desabrigados, impedidos de retornarem às suas casas.

Mas se o rastro de alagamento não poupou construções pujantes como o Aeroporto Salgado Filho e os estádios da Beira Rio e Arena Grêmio, o setor elétrico também não passaria incólume.

No dia 30 de abril, a Agência Nacional de Energia Elétrica avisava que estava monitorando a situação da barragem da UHE Dona Francisca, que teve que acionar seu Plano de Ação de Emergência após intensas chuvas nas cidades do entorno do rio Jacuí. Nesse dia, também foram registradas as primeiras mortes e também a queda de uma ponte na cidade de Santa Maria.

Daí em diante, mais barragens de usinas começaram a trazer atenção por conta dos níveis dos rios. No dia 1º de maio, a UHE 14 de julho, da Ceran, localizada no rio das Antas, entrou em estado de alerta e às 13h40 do dia seguinte, houve o rompimento parcial do trecho direito. O Plano de Ação de Emergência foi colocado em prática para que a população pudesse ser retirada com antecedência e em segurança.

Na operação, o Operador Nacional do Sistema também precisou agir. Ainda no dia 1º, com o alagamento do pátio, a SE Nova Santa Rita 525/230 kV foi desligada por questões de segurança dos profissionais e equipamentos. No dia seguinte, foi solicitado o despacho da UTE Pampa Sul para aumento da segurança elétrica, pelo mesmo motivo também foi realizada importação de energia do Uruguai, através da conversora de Melo.

No último boletim do ONS disponível, publicado no dia 15 de maio, são 23 LTs, oito transformadores e quatro UHEs (Monte Claro, 14 de Julho, Jacuí e Dona Francisca) fora de operação. Outras nove LTs e seis transformadores já retornaram à operação.

Nas duas principais distribuidoras do estado, CEEE Equatorial e RGE Sul, é onde fica mais fácil ver o tamanho do estrago das enchentes. Redes destruídas, subestações desligadas e consumidores isolados. No auge, foram mais de 400 mil unidades no estado sem energia. Dados do Governo do Rio Grande do Sul da manhã da sexta-feira, 17 de maio, mostram que há 114.832 pontos sem energia elétrica na área da CEEE Equatorial (6,3% do total) e outros 119.200 na da RGE Sul (3,9% do total).

No primeiro momento as distribuidoras se engajaram para ajudar no resgate das pessoas, cedendo seus caminhões para que a população fosse para lugares mais seguros. Depois veio o momento de fazer o levantamento das áreas mais afetadas para começar o trabalho de restabelecimento da rede. Equipes de outras concessionárias dos Grupos Equatorial e CPFL, por terem familiaridade com os métodos das coirmãs, foram ao estado para auxiliar nos trabalhos.

Além dessas equipes, distribuidoras de outros estados também enviaram pessoal e equipamentos para apoiar as concessionárias locais. Esse movimento já vinha sendo cogitado pelo comitê de gerenciamento de crises do MME, como aconteceu no Amapá em 2020, quando a Eletronorte atuou na reconstrução de uma LT. A Celesc foi a primeira a chegar, mas a Cemig também já enviou ao Sul helicóptero, quadriciclos e Unidades de Geração e Transformação Móveis, além de técnicos e engenheiros.

“É um fator diferencial que está sendo feito pelas empresas nesse momento”, comenta o presidente da Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia, Marcos Madureira. Ele reforça que as distribuidoras enfrentam a limitação de só poder atuar na reconstrução de redes cujos locais têm a sua entrada autorizada pela Defesa Civil.

Com redes subterrâneas no centro histórico de Porto Alegre, a CEEE Equatorial atua para religar a região. Mesmo partes que não estão submersas estão sem energia. Em vídeo divulgado em redes sociais, o presidente da distribuidora Riberto Barbanera, explicou a complexidade da operação, já que são 200 câmaras transformadores debaixo da terra, cada uma com cerca de 20 cabos.

Em teleconferência a analistas de mercado no último dia 10, o vice-presidente de Operações Reguladas do Grupo CPFL, Luis Henrique Ferreira, disse que as chuvas impactaram 8% dos ativos de distribuição da RGE Sul. Segundo ele, diagnóstico prévio apontou que as principais substituições de equipamentos serão em medidores e transformadores.

As movimentações para mitigar os impactos das fortes chuvas no setor começaram pelo ministro Alexandre Silveira, que revelou estudos para uso de recursos do setor em favor de isentar os gaúchos de pagarem as contas de luz. A conta de Itaipu, que fechou em R$ 399,2 milhões, seria uma dessas fontes, assim como o Programa de Eficiência Energética. O presidente da associação de distribuidoras contou ainda à Agência CanalEnergia que também está sendo estudada pelo governo a criação de uma Medida Provisória para que recursos extraordinários sejam usados na mitigação de impactos aos consumidores gaúchos.

A Agência Nacional de Energia Elétrica se reuniu na última terça-feira para deliberar sobre flexibilizações na prestação do serviço de distribuição. A diretoria decidiu proibir a suspensão no fornecimento do serviço e a cobrança por no mínimo três meses 90 dias para as cidades atingida e por um mês para as demais.

A Aneel também liberou a suspensão dos contratos das concessionárias com unidades destruídas pelas enchentes, sem obrigações contratuais para ambos os lados. A leitura do consumo também poderá ser feita pela média com dispensa de faturamento quando a leitura não pode ser feita. As revisões cadastrais e cancelamentos do benefício da tarifa social também foram suspensas.

Outra suspensão determinada pela diretoria da agência foi a do pagamento de CDE-Uso, CDE-GD, CDE-Covid, CDE-Conta Escassez, Proinfa e TFSEE pelas distribuidoras gaúchas durante 90 dias. O valor soma R$ 757 milhões e será pago sem multa e juros.

De acordo com o diretor-geral da agência, Sandoval Feitosa, no momento, a Aneel concentrou os esforços em garantir a prestação do serviço da melhor forma possível nas áreas atingidas. “Nas localidades onde ainda não é viável a retomada imediata do fornecimento de eletricidade, as concessionárias estão preparadas para, assim que seja possível, realizar a pronta avaliação das instalações atingidas e iniciar normalização dos serviços”, explica.

Há ainda um pleito da Abradee que deverá ser julgado em breve pela Aneel para que os recursos do Programa de Eficiência Energética sejam usados para a compra de equipamentos para os consumidores afetados. A associação também está engajada na arrecadação e já doou alimentos e itens de limpeza para o Rio Grande do Sul.

O presidente do Instituto Acende Brasil, Claudio Sales, frisa que os agentes governamentais devem cumprir a sua parte, atuando em busca de soluções. Para ele, a reconstrução do estado deve ser feita da maneira mais eficiente possível. “O desafio é monstruoso”, comenta.

Apesar do foco na garantia da prestação do serviço e da recuperação da rede, a complexidade da situação do estado, em que é difícil prever a abrangência dos estragos, suscita debates sobre o que ainda virá para o setor. Há dúvidas sobre como ficarão os desenhos das concessões, uma vez que várias unidades foram destruídas e não há certeza se haverá um retorno dessas unidades. Prefeitos já sinalizaram com a extinção de alguns bairros em cidades afetadas, por estarem em áreas de risco.

Angela Gomes, Diretora Técnica na área de Redes da PSR, considerou a discussão realizada pela Aneel ponderada, por conta da incerteza sobre o retrato do futuro. Ela destaca a suspensão por 90 dias do pagamento de encargos pelas distribuidoras, o que permite um fôlego de caixa para cobrir os prejuízos imediatos com a recomposição da rede. Os encargos voltarão a ser cobrados ao fim do prazo.

Ela lembra que ainda não houve uma discussão sobre os prejuízos dos agentes com os danos à rede. Os investimentos feitos em regiões que talvez não existirão mais poderão serão objeto de questionamento. Outro debate que a diretora da PSR alerta que virá é sobre a recomposição econômico-financeira, uma vez que o mercado afetado ficará reprimido por um período. A pandemia já motivou um pedido similar que ainda não foi definido pela Aneel e essas enchentes possivelmente deverão motivar outro. “Muita água ainda vai rolar nesse processo para entender a profundidade dos danos”, aponta.

O arcabouço regulatório prevê o tratamento de situações extraordinárias em todos os segmentos do setor, mas o diretor-geral da Aneel admite que pedidos das distribuidoras poderão chegar à agência. “No caso das concessionárias de distribuição, há sim previsão de solicitação de reequilíbrio da concessão, o que se dará a partir da análise do caso concreto”, pontua. Segundo ele, ainda que não tenha recebido pedidos específicos, todos os que forem encaminhados serão analisados e tratados adequadamente.

Na visão da diretoria da PSR, o tratamento aos ativos que sofreram danos também poderá merecer um olhar diferenciado. Na regulação atual, as distribuidoras poderão ser prejudicadas, porque na comparação com concessionárias que não foram afetadas, o efeito isolado do custo da avaria dos equipamentos será observado como ineficiência.

As enchentes em terras gaúchas acabaram reforçando o que já vinha sendo aventado desde o fim do ano passado, após os temporais em São Paulo (SP). A inclusão do componente da mudança climática na renovação das concessões de distribuição. Para o presidente da Abradee, a necessidade da inserção existe, uma vez que o aumento da resiliência das redes é urgente. A associação realizou workshop com representantes do Reino Unido para compartilhar experiências, como a que por conta uma nevasca, consumidores ficaram vários dias sem energia na Inglaterra.

O white paper do Instituto Acende Brasil ‘Estratégias de adaptação do setor elétrico para eventos climáticos extremos’, publicado em 2023, salienta que mudanças climáticas também podem resultar em impactos nos sistemas de distribuição de energia elétrica. Os eventos extremos trazem maior vulnerabilidade da ocorrência de falhas e blecautes na rede. O documento diz que o setor global de energia enfrenta um desafio nos próximos 20 a 30 anos, porque precisará se adaptar às mudanças climáticas e seus efeitos para garantir que o fornecimento de eletricidade permaneça seguro e confiável.

Tradicional na comercialização no Sul do Brasil e sediada em Bento Gonçalves, a Ludfor Energia colocou todo seu escritório da capital gaúcha em home office. De acordo com o CEO Douglas Ludwig, o momento é de auxiliar os clientes atingidos e intensificar a relação, prorrogando pagamentos e isentando multas, juros e take mínimo.

Ele acredita que o consumo dos meses de maio e junho acabará afetado pelo cenário extremo, já que muitas empresas e fábricas não sabem quando voltarão a funcionar, por ainda estarem alagadas ou mesmo destruídas. “Não tem como tentar buscar contratos ou datas de pagamento quando o cliente está debaixo d´água”, avalia.

Ele elogiou as medidas tomadas pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, que suspendeu o desligamento de empresas afetadas pelas enchentes até que haja uma decisão final da Aneel sobre os casos. A CCEE também instituiu o Comitê de Acompanhamento para avaliar os impactos do cenário no mercado de energia e propor medidas para oferecer apoio aos associados.

A comunicação com a Aneel também foi elogiada pelo executivo, que lembra que na comercialização os casos deverão ser olhados caso a caso. Muitas empresas poderão ter seu consumo reduzido por absoluta falta de matéria-prima ou mesmo por ter a sua planta destruída. “Não dá para fazer um regra geral para todas, tem que ter um sensibilidade e dar um prazo para as empresas se reerguerem nesse momento”, avisa.

Na geração, a Ludfor tem no estado a UHE Pedra Branca, que chegou a ser inundada, mas voltou a operar nesta semana. A empresa também tem se engajado na arrecadação de doações e donativos, com a gestora de consumidores Alana Baú capitaneando as arrecadações junto a equipe interna e em outras geradoras e comercializadoras.

 

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