Artigo: Fronteiras do Setor (Parte 3): Integrando os setores de gás e elétrico

Data da publicação: 01/12/2021

01/dez/2021, Canal Energia

Esta série de quatro artigos apresenta um sumário executivo dos quatro painéis da conferência Brazil Energy Frontiers 2021, evento internacional que acaba de ser organizado pelo Instituto Acende Brasil nos dias 20 e 21 de outubro.

Os dois primeiros artigos desta série de quatro textos, publicados na semana passada, resumiram os dois primeiros painéis da conferência: (1) “Aprimorando o Mercado de Energia Elétrica” via adequação dos chamados ‘produtos’ de energia e aprimoramento de mecanismos de comercialização e de segurança de mercado; e (2) “Coordenando a Abertura do Mercado” de energia elétrica no Brasil, incluindo-se aqui a integração de recursos energéticos distribuídos e os novos papeis das distribuidoras.

Este terceiro artigo resume os trabalhos do 3º. painel do Brazil Energy Frontiers 2021: “Integrando os setores de gás e elétrico”, no qual se explorou a necessidade de uma sintonia fina e abrangente entre as regulamentações dos mercados de gás natural e de energia elétrica para que seja possível explorar as sinergias e superar os desafios de desenvolvimento dos dois mercados.

Painel 3 – Integrando os setores de gás e elétrico

A integração entre os setores de gás natural e elétrico foram o tema do 3º. painel do Brazil Energy Frontiers 2021. Em sua apresentação, Patrícia Guardabassi, pesquisadora sênior e gerente de projetos do Instituto Acende Brasil, enfatizou que a indústria do gás está passando por grandes transformações para se tornar um mercado mais aberto e diversificado com as perspectivas de aumento da produção doméstica de gás natural.

O setor elétrico é um usuário importante de gás natural e tem nas usinas termelétricas uma âncora para o desenvolvimento e a segurança do sistema elétrico. O atual momento, em que a regulação da nova lei do gás natural está sendo tratada, é conveniente para intensificar esse diálogo e promover uma integração harmoniosa entre os dois setores.

“Existe uma perspectiva de que, dadas as recentes descobertas, haja uma elevação das reservas provadas de gás natural da ordem de cinco vezes”, afirmou Patrícia. “Isso deve levar a uma duplicação da oferta doméstica da produção do insumo nos próximos anos que, por sua vez, promoverá a redução do preço do produto no mercado interno porque a cadeia de importação deixará de existir.”

A oferta de gás natural a preços inferiores aos praticados hoje no país possibilitaria maior utilização do insumo como fonte de geração termelétrica no Brasil. Além da geração termelétrica a preços mais competitivos, um outro benefício é a diversificação da matriz, não apenas pela utilização do gás, mas também pela possibilidade de substituição de fontes derivadas de combustíveis fósseis mais poluentes.

Outro benefício é a complementariedade entre usinas termelétricas e hidrelétricas.  “Essa complementariedade é particularmente importante para a operação do sistema porque as termelétricas dão conforto ao operador frente às frequentes variações decorrentes de fontes não controláveis”, ressaltou Patrícia.

Hoje, 61% da capacidade instalada de termelétricas no Brasil é totalmente flexível, e apenas 18% das termelétricas têm inflexibilidade igual ou superior a 50%. “Infelizmente, essa configuração encontra-se um pouco ameaçada porque a Lei 14.182/2021, da desestatização da Eletrobras, prevê a inserção de expressiva quantidade adicional de geração termelétrica (8 mil MW) com grande inflexibilidade – pelo menos 70%. Além disso, as usinas seriam localizadas em regiões onde não há gasodutos”, pondera Patrícia Guardabassi.

Além de não existir transporte para o combustível, essas termelétricas ficariam longe dos centros de carga, conforme previsto pela lei da desestatização da Eletrobras, exigindo obras de infraestrutura para transportar a eletricidade. É relevante destacar que o custo da construção dos gasodutos seria imposto ao setor elétrico, de acordo com o texto aprovado pelo Legislativo.

Hoje, a produção doméstica corresponde a 86% da oferta de gás natural do país. Do total ofertado, apenas 43% é comercializado, sendo 40% por meio de gasodutos e 3% na forma de Gás Natural Liquefeito (GNL). A comercialização do gás natural é reduzida, entre outros motivos, porque a priorização é dada à produção do petróleo – 37% do gás associado extraído dos poços é reinjetado.

No entender de especialistas do setor, um dos caminhos a serem percorridos para o país utilizar todo o potencial existente de gás natural é a ampliação e a garantia da concorrência. Nesse sentido, a Petrobras e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) assinaram um acordo, em 2019, que definiu compromissos para a saída da estatal do mercado de gás. Outro aspecto que merece atenção é que a regulação, hoje a cargo dos estados, não promove uniformidade.

Outras mudanças estão em curso para reduzir a concentração da produção do gás natural no Brasil, com destaque para algumas medidas: (a) as rodadas de licitação nos campos de exploração de petróleo; (b) a oferta permanente de campos devolvidos ou não arrematados em rodadas anteriores promovidas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP); e (c) o processo de desinvestimentos de ativos da Petrobras. Vale ressaltar, ainda, que a nova Lei do Gás (Lei 14.134/2021) tem por objetivo encorajar que os agentes ajam mais livremente. Nesse sentido, a ANP promove o acesso não discriminatório e negociado a instalações de estocagem, a gasodutos de escoamento, a instalações de tratamento e processamento de gás natural e a terminais de GNL. Cabe à ANP regular a comercialização de gás natural transacionada nos gasodutos de transporte.

Após a primeira apresentação do 3º. painel do do Brazil Energy Frontiers 2021, o professor Edmar Almeida (da UFRJ, Universidade Federal do Rio de Janeiro) explorou os desafios e a agenda para a integração dos setores de gás e elétrico no Brasil, integração essa que ele define como o pilar do desenvolvimento da indústria do gás no país, uma vez que 50% da demanda do insumo se destina à geração elétrica. “Nós temos uma perspectiva de forte crescimento da produção doméstica no Pré-sal brasileiro, principalmente a partir de 2025 a 2027 e, para alocar esse gás novo, o grande potencial de mercado é justamente a geração elétrica”, afirmou o professor.

No entender de Edmar, alguns problemas básicos dificultam a integração dos dois setores. Em primeiro lugar, ele ressaltou os riscos dos projetos termelétricos no Brasil, que refletem a dificuldade de integrar a dinâmica das duas indústrias – gás e energia elétrica. Esses riscos estão associados a fatores como: (a) a forte demanda por flexibilidade da geração térmica em um contexto de oferta interna de gás inflexível; (b) penalidades elevadas por não geração; (c) necessidade de comprovar lastro de combustível, mesmo não tendo garantia de despacho; (d) riscos associados à articulação da expansão da oferta doméstica e da capacidade de geração termelétrica; e (e) rigidez dos contratos PPA (sigla em inglês para Power Purchase Agreement), que são contratos de negociação de energia em longo prazo.

“Se um contexto econômico mudar ao longo do tempo, não haverá oportunidade de rever esses contratos. Dessa forma, os contratos PPA – que são muito bons para viabilizar projetos – podem se tornar, mais adiante, um fator de risco”, afirmou Almeida.

O professor também ressaltou como ponto de preocupação o fato de que 90% do gás produzido no Brasil é de gás associado e, portanto, inflexível. Isto implica que o produtor não tem como diminuir ou aumentar a produção do gás em função do despacho termelétrico. Por outro lado, a demanda de gás para o setor termelétrico é volátil e, de certa forma, imprevisível.

Nesse caso, é preciso buscar algum tipo de flexibilidade de oferta para compensar a rigidez que existe no produto nacional. O mercado encontrou no gás natural liquefeito (GNL) o mecanismo de flexibilidade da oferta que permite a expansão termelétrica no Brasil. “O GNL é uma solução, em termos de mecanismo de flexibilidade, que funciona muito bem, mas é uma solução cara”, explicou o palestrante.

Outro ponto analisado foi o parque termelétrico brasileiro que, no entender de Edmar Almeida, é inadequado para períodos longos de despacho. “Temos muitas térmicas com custo elevado e, quando acionadas simultaneamente, geram uma conta adicional alta para o setor elétrico. Nos últimos meses estamos com uma conta mensal de quase R$ 5 bilhões nas bandeiras tarifárias devido ao despacho dessas termelétricas.”

A situação se agrava quando a nova realidade do despacho das térmicas é considerada. Até 2010/2011, algo em torno de 10% da energia, no máximo, era gerada por térmicas. Já a partir de 2012/2013, houve uma mudança de patamar em termos de intensidade da utilização do parque termelétrico, com despacho acima de 15%.

O ano de 2020 também merece ser analisado porque a demanda de energia foi baixa em razão da pandemia de covid-19 e da quarentena. Mesmo assim, cerca de 15% da geração de eletricidade foi suprida por termelétricas. Isso deixa claro que houve uma mudança no padrão hidrotérmico do país. De acordo com informações atualizadas da Aneel, o despacho de um parque térmico inadequado, de forma prolongada, provoca um desequilíbrio econômico-financeiro no setor elétrico com efeitos imprevisíveis.

Ao falar em oportunidades para a integração gás-eletricidade, Edmar Almeida ressaltou a necessidade de aumento da oferta doméstica de gás natural. Ele mencionou, ainda: a liberalização e introdução da concorrência na indústria do setor; o desenvolvimento de novos mecanismos de flexibilidade da oferta e demanda de gás; a expansão e diversificação da oferta de energia elétrica; e a revisão do desenho de mercado de eletricidade.

O debate do 3º. painel incluiu perguntas formuladas por Claudio Sales, Presidente do Instituto Acende Brasil, que atuou como moderador, e questões enviadas pelo público, via chat. Participaram Bruno Chevalier (Pátria Investimentos), Eduardo Sattamini (Engie), Symone Araújo (ANP) e Lucas Ribeiro (Eneva).

Todos os painéis do Brazil Energy Frontiers 2021 foram integralmente gravados e todas as apresentações e vídeos estão disponíveis em nosso website (acendebrasil.com.br).

O último artigo desta série de quatro textos será publicado amanhã e trará as reflexões atreladas ao 4º. painel do Brazil Energy Frontiers 2021: como viabilizar a inserção de tecnologias que podem alterar o perfil de operação do setor elétrico.

Claudio J. D. Sales e Patrícia Guardabassi são, respectivamente, Presidente e Pesquisadora Sênior do Instituto Acende Brasil.

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