ARTIGO: Gatos elétricos, complacência e corrupção
Quando um consumidor opta por furtar energia elétrica, emprega o mesmo raciocínio do indivíduo corrupto: opta por levar vantagem para si mesmo, tentando racionalizar que sua ação individual não fará muita diferença para os demais cidadãos.
A depender da região do Brasil, esse triste e crescente fenômeno é conhecido como “gato” ou “macaco”, e na linguagem técnica o mesmo crime é chamado de “perda não técnica” ou “perda comercial”. Independentemente do nome, em português claro estamos falando de furto ou fraude da conexão de energia elétrica.
Embora o furto e a fraude de energia elétrica possam parecer ações inofensivas, elas geram impactos grandes sobre os outros consumidores de energia. Esses crimes, segundo o artigo 155 do Código Penal, são sujeitos a penas de 1 a 4 anos de prisão, mas são encarados de forma leniente pela sociedade e pelas autoridades.
O resultado, após décadas de complacência e impunidade, é que em algumas regiões chegamos a níveis de furto e fraude insustentáveis, inviabilizando financeiramente as distribuidoras de energia e comprometendo a oferta do serviço público de eletricidade por essas empresas.
Em termos médios nacionais, em 2021 as perdas comerciais com furto de energia das 53 distribuidoras de eletricidade do país foram de mais de 16% do mercado em baixa tensão, sendo que alguns Estados apresentam valores muito maiores.
O volume de energia roubada é assustador: em 2021, considerando a baixa e a alta tensão, os furtos totalizam mais de 34 milhões de megawatts-hora (MWh), o equivalente a quase todo o consumo anual (95%) de todos os consumidores dos 7 estados do Norte do Brasil (Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins).
Para se ter uma noção do que isso significa em termos monetários, pode-se multiplicar esse montante de energia furtada pela tarifa média de fornecimento de 2021 (R$ 818/MWh, incluindo tributos) para se obter a perda de receita anual provocada pelas perdas comerciais: R$ 28 bilhões. Como referência, o orçamento mensal para o programa social Bolsa Família para 2023 é de R$ 13 bilhões por mês. Portanto, o furto e a fraude de eletricidade de 2021 representaram mais de dois meses do que será destinado ao Bolsa Família em 2023.
As concessionárias de distribuição têm todo o interesse em resolver esse problema e têm tomado inúmeras ações práticas e custosas como: 1- blindar caixas com equipamentos de medição para evitar a manipulação ou destruição destes, inclusive de tiros de fuzis de milicianos e traficantes que dominam vastas regiões no Rio de Janeiro e aterrorizam a população nas chamadas “Áreas de Risco”; e 2- trocar medidores analógicos por medidores digitais para permitir o monitoramento e facilitar a detecção de furtos de energia.
Mas questões culturais, limitações institucionais e interesses específicos das Áreas de Risco ainda atrapalham essas iniciativas. Citamos abaixo dois exemplos marcantes de concessões em situação crítica no que se refere a essa cultura da impunidade.
No Rio de Janeiro, em áreas dominadas por traficantes e milicianos, as concessionárias elétricas não conseguem acessar partes de suas redes porque não podem comprometer a segurança de seus eletricistas, profissionais que são ameaçados de morte quando buscam regularizar conexões fraudulentas. As milícias, aliás, “revendem” o serviço de eletricidade aos moradores das comunidades, que não têm outra opção para ter acesso a esse serviço essencial para a dignidade humana.
Portanto, se o próprio Estado – que tem o monopólio da força – perdeu o controle territorial e não consegue restabelecer a ordem, qual ação poderia ser tomada pelas duas concessionárias do Rio (Enel-RJ e Light) para reduzir seus índices de furtos de energia, que em 2022 já atingiram valores superiores a 40% e 60% do mercado de baixa tensão, patamares muito superiores à média nacional de 16%?
Já no Amazonas, que tem um inacreditável índice de furto de energia de 123% do mercado de baixa tensão – o que implica que uma parcela dos furtos ocorre nas redes de alta tensão ou simplesmente não é medida – a estratégia de combate às perdas não técnicas baseada na implantação de um sistema de medição centralizada foi sabotada pela própria Assembleia Legislativa por meio de uma lei que proibia a instalação de medidores externos (fora do imóvel do consumidor). Apesar do contratempo gerado pela ação populista e eleitoral dos legisladores amazonenses – e agora que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional a lei estadual que impedia a adoção do novo sistema de medição -, a concessionária local segue planejando investir R$ 2 bilhões até 2030 para instalar equipamentos de medição eletrônica e centralizada para aumentar sua eficiência operacional e reduzir os gatos.
O caminho para atacar o problema de furtos e fraudes de energia envolve três dimensões complementares e interdependentes: (1) o Estado precisa recuperar o controle territorial e permitir que as concessionárias façam seu trabalho junto às redes elétricas sem colocar em risco a vida de seus profissionais; (2) o Judiciário deve passar a punir energicamente os que cometem o crime de furto de energia, permitindo desconexões de ligações clandestinas e impondo multas severas aos infratores; e 3) a Aneel precisa reconhecer a realidade auto-evidente de condições que fogem ao controle das concessionárias e, em função disso, estabelecer mecanismos regulatórios que reflitam de forma adequada as limitações físicas e operacionais intransponíveis das áreas de concessão na hora de definir as metas regulatórias de Perdas Não-Técnicas das distribuidoras.
Assim como a corrupção, as perdas comerciais ocasionadas pelo furto de energia elétrica são como um câncer: inicialmente parecem inofensivas mas, se não forem controladas, tendem a crescer continuamente, comprometendo a própria prestação adequada do serviço.
Por isso é essencial que nossas autoridades reconheçam a gravidade dessas violações e interrompam a atual cultura de complacência e cumplicidade. O desafio é gigante e, se não for enfrentado rapidamente, a sociedade em breve se verá prostrada diante do crime que já parece ter vencido em algumas regiões de nosso país.
Eduardo Müller Monteiro, Claudio Sales e Richard Hochstetler são, respectivamente, Diretor Executivo, Presidente e Diretor de Assuntos Econômicos e Regulatórios do Instituto Acende Brasil.