Artigo: O que falta para conectar Roraima?
01/nov/2021, Valor Econômico
A linha de transmissão Manaus-Boa Vista, se e quando pronta, finalmente tirará Roraima da condição de ser o único Estado do Brasil sem acesso à malha de transmissão elétrica de dimensão continental conhecida como Sistema Interligado Nacional (SIN).
Enquanto Roraima permanecer isolada eletricamente, o Estado continuará dependente da operação de usinas termelétricas de alto custo e as perdas acumuladas nos últimos anos continuarão a crescer. Perdas para o empreendedor, que iniciou os investimentos para cumprir os prazos do contrato de concessão assinado há quase 10 anos (em 2012), e perdas para todos nós consumidores brasileiros que, de 2015 até hoje, pagamos em nossas contas de luz R$ 7 bilhões a mais do que teríamos assumido se a linha estivesse em operação.
Mas o que falta para conectar Roraima ao Brasil? A resposta exige examinar o que este empreendimento viveu na última década.
O traçado da linha tem 721 km de extensão, dos quais 122 km atravessam parte de uma terra indígena. A linha foi projetada margeando a rodovia BR 174 já existente para reduzir a interferência das obras sobre a floresta.
Em função de sua extensão e de sua localização, foram necessários vários anos para que fosse possível obter a Licença de Instalação (LI), documento que autoriza o início das obras.
A LI para o início das obras foi viabilizada quando foram incluídos condicionantes atrelados ao Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA-CI). Tais condicionantes, além de aumentarem os custos de instalação para mitigar os impactos da construção, contemplaram mais de R$ 82 milhões de investimentos diretos durante a construção e operação da linha para beneficiar a Terra Indígena Waimiri-Atroari.
Dentre os compromissos assumidos no PBA-CI para minimizar impactos da obra destacam-se: o alteamento das torres para cerca de 100 m para que os cabos ficassem acima da copa das árvores; a construção simultânea de no máximo 10 torres; e o uso de drones no lançamento dos cabos.
Já os R$ 82 milhões em benefício dos Waimiri-Atroari foram alocados nas seguintes áreas:
- saúde indígena, com 2 novos postos de saúde, um consultório odontológico e 41 casas de apoio, além da compra de medicamentos e contratação de médicos, dentistas e enfermeiros;
- educação indígena, envolvendo a contratação de professores, compra de material escolar e instalação de energia solar em 59 aldeias;
- proteção do território indígena, com nova pista de pouso, construção de 3 novos postos de fiscalização indígena, reforma e aparelhamento de 7 postos existentes, e aquisição de 40 botes com motores, 6 caminhonetes 4×4, aparelhos GPS, drones, câmeras e binóculos;
- comunicação indígena, com o fornecimento de internet a 27 novos pontos e implantação de 74 kits de radiofonia; e
- incremento da produção indígena, ações de educação ambiental, recuperação ambiental, e reflorestamento.
Aos R$ 82 milhões acima somaram-se R$ 13 milhões a título de Compensação Ambiental para projetos de Unidades de Conservação e R$ 45 milhões para programas socioambientais nas áreas no entorno do empreendimento, levando ao investimento total de R$ 140 milhões que viabilizou a emissão da Licença de Instalação.
Vencido o obstáculo inicial na esfera socioambiental com a emissão da LI, o empreendimento precisou enfrentar um outro desafio na arena regulatória, pois houve mudanças das condições econômicas desde quando o contrato de concessão foi assinado em 2012. Afinal, a empresa vencedora do leilão executaria a obra e passaria a receber receita a partir de 2015.
A Aneel reconheceu a necessidade de revisão no contrato de comum acordo entre as partes: o poder concedente, representado pela própria Aneel, e o concessionário vencedor do leilão.
Entretanto, não houve convergência entre a nova realidade de custos para construção da linha, apontada pela concessionária, e a nova Receita Anual Permitida (RAP) pela Aneel.
A judicialização dessa questão tornou-se iminente e poderia levar anos, mas essa ameaça foi superada: a Aneel e a concessionária, de forma pioneira, concordaram em submeter a disputa a uma arbitragem, cuja decisão será acatada em caráter definitivo.
Superados os obstáculos ambientais e regulatórios, a expectativa era de que as obras pudessem ser iniciadas, mas eis que surgiu, em agosto de 2021, novo pleito dos Waimiri-Atroari, que declararam querer receber R$ 100 milhões adicionais, levando o projeto a nova paralisia.
A terra indígena em questão, ocupada por uma população de cerca de 2.330 indígenas, tem uma área de 2.586.000 hectares, maior do que o estado de Sergipe, enquanto a área a ser diretamente afetada pela Linha de Transmissão é de 65 hectares, 0,0025% da área da reserva.
O último pleito adicional de R$ 100 milhões, além de inviabilizar economicamente o projeto e ser uma afronta ao longo e complexo processo de licenciamento ambiental – que incluiu a definição de extensa lista de condicionantes e compensações e mobilizou centenas de profissionais e autoridades -, levanta suspeitas sobre as reais intenções de alguns dos atores envolvidos.
Estaríamos diante de uma grande encenação cujo objetivo é apenas bloquear o empreendimento buscando extrair, de forma imprevisível e sem critérios, benefícios que nunca existiram e que, sem a construção do empreendimento, jamais existirão?
É bom lembrar do contexto maior em que esta linha de transmissão se insere: sem essa interconexão, Roraima permanecerá eletricamente isolada do restante do país e a operação de termelétricas locais continuará a encarecer “multi-bilionariamente” a tarifa de eletricidade de todos os brasileiros, além de privar os próprios Waimiri-Atroari dos benefícios definidos nas condicionantes do licenciamento ambiental.
Quais atores se beneficiam do isolamento de Roraima e da operação atual? A resposta a esta pergunta é crucial para chegarmos à resposta da pergunta inicial do título deste artigo.
Claudio J. D. Sales e Eduardo Müller Monteiro são, respectivamente, Presidente e Diretor Executivo do Instituto Acende Brasil.