ARTIGO: Por que é necessário modernizar o setor elétrico?
11/jul/2022, Valor Econômico online
O setor elétrico passa por profundas mudanças na composição de fontes de geração, na forma de operar o sistema e na forma de transacionar a energia. A regulação vigente não foi concebida para este contexto, e carece de adaptações.
O Projeto de Lei 414/2021 (PL 414), que está em fase final de tramitação na Câmara dos Deputados, visa a preencher essa lacuna, estabelecendo as linhas mestras para a adequação do marco regulatório.
Inicialmente concebido no Senado (PLS 232/2016) com o objetivo de promover a “portabilidade da conta de luz”, ao longo de sua tramitação o Projeto de Lei teve o seu escopo ampliado para incorporar as recomendações do Grupo de Trabalho de Modernização do Setor Elétrico do Ministério de Minas e Energia (MME) e as contribuições recebidas na Consulta Pública 33/2017 também promovida pelo MME.
A maioria das medidas propostas no Projeto de Lei podem ser agrupadas em quatro temas: 1- abertura do mercado; 2- aperfeiçoamento do mercado de energia; 3- aprimoramento das tarifas; 4- redução de encargos tarifários.
No primeiro tema, o PL 414 estabelece um cronograma para permitir que eventualmente todos os consumidores possam escolher o seu fornecedor de energia elétrica, a chamada “abertura de mercado”. Com a liberdade de escolha, o preço do fornecimento de energia passará a ser disciplinado pela concorrência, o que tende a favorecer a gestão ativa da contratação de energia, inovações na precificação da energia e maior engajamento do consumidor.
No entanto, a fim de viabilizar uma abertura de mercado sustentável são necessárias algumas adequações regulatórias que o próprio Projeto de Lei propõe por meio das seguintes medidas: 1- a segregação das atividades de comercialização de energia das atividades de distribuição de energia; 2-o aprimoramento da infraestrutura de medição e faturamento; 3- a modernização das redes; 4- a provisão do suprimento de última instância, caso o consumidor fique sem fornecedor de energia; 5- a formulação de soluções para contratos firmados pelas distribuidoras para atendimento futuro de consumidores que posteriormente optarem por outro fornecedor; 6- a representação de pequenos consumidores na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) por agentes varejistas; 7- ações de conscientização dos consumidores; e 8- o estabelecimento de referências de preços.
O segundo tema abordado pelo Projeto de Lei é o aprimoramento do mercado, que hoje padece de algumas fragilidades e imperfeições que comprometem seu futuro, tais como: o risco de crises de inadimplência na CCEE; a precificação de energia elétrica inadequada; a alocação inapropriada de riscos e custos associados à manutenção da garantia de suprimento e à manutenção da qualidade do suprimento entre os agentes.
Buscando mitigar esses problemas, o Projeto de Lei prevê: 1- a redução do intervalo entre liquidação das transações realizadas na CCEE de periodicidade mensal para semanal ou inferior; 2- a adoção de um sistema de garantias financeiras para reduzir o risco de inadimplência; 3- a aquisição dos chamados ‘serviços ancilares” por meio de mecanismo concorrencial; 4- o aprimoramento do processo de formação de preços via novo modelo computacional ou lances de oferta submetidos pelos agentes; 5- a internalização dos impactos ambientais dos empreendimentos de geração (como as emissões de gás de efeito estufa) aos preços; 6- a divulgação prévia da pauta e transmissão das reuniões do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico; 7- a alocação do risco hidrológico de novas concessões hidrelétricas para os geradores; 8- a reformulação da sistemática de leilões para contratação de energia proveniente de empreendimentos novos e existentes, considerando como os atributos de cada fonte colaboram para o provimento de confiabilidade e adequabilidade sistêmica – o que se denomina de ‘lastro’; e 9- o rateio dos custos de atendimento do lastro entre todos os consumidores por meio de encargo.
O terceiro tema trata das tarifas. Diante das novas formas de fornecimento de energia, é necessário aprimorar a estrutura tarifária para evitar distorções ocasionadas por tarifas que não reflitam adequadamente os custos incorridos. O Projeto de Lei endereça essa questão estabelecendo que: 1- a precificação deve ser diferenciada por horário e por localidade; e 2- a cobrança pelos serviços de transmissão e distribuição deixe de ser realizada em função do consumo mensal (já que estes custos dependem da demanda de pico do sistema e não dos fluxos acumulados no mês). Também são incluídos dispositivos legais para conferir maior segurança jurídica, explicitando a possibilidade de corte do fornecimento em função de inadimplência e de faturamento na modalidade pré-pagamento (ações que são frequentemente contestadas com base no argumento de que energia elétrica é um serviço público essencial).
O quarto tema abordado no PL 414 são os encargos, com várias medidas para conter ou reduzir os subsídios arcados por encargos cobrados na conta de energia elétrica: 1- exigindo que os descontos tarifários concedidos sejam condicionados à oferta de contrapartidas dos beneficiários; 2- prevendo o término dos subsídios para as ‘fontes incentivadas’ ao final das outorgas vigentes; 3- reduzindo o subsídio concedido aos Sistemas Isolados para a equalização de suas tarifas à média dos consumidores do Sistema Interligado; 4- destinando pelo menos dois terços do valor obtido com a privatização ou prorrogação de concessões hidrelétricas (‘valor estimado da concessão’) para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), o que reduzirá o valor das cotas deste encargo cobrado dos consumidores.
Foram investidos muita reflexão e esforço na concepção do Projeto de Lei 414/2021 buscando adequar o marco regulatório à nova realidade do setor elétrico. Agora é necessário esmiuçar como essas diretrizes serão implementadas. É por isso que é fundamental que o Congresso Nacional aprove logo este Projeto de Lei a fim de possibilitar sua regulamentação infralegal e o avanço da modernização no setor elétrico.
Claudio J. D. Sales e Richard Hochstetler são, respectivamente, Presidente e Diretor de Assuntos Econômicos e Regulatórios, do Instituto Acende Brasil.