Caminhos da energia no Brasil

Data da matéria: 08/12/2020

08/Dez/2020, O Estado de S. Paulo – A transformação do setor de Energia no Brasil e no mundo está em um momento crucial. Em termos de fontes energéticas, o peso das renováveis é cada vez maior e este é um caminho inevitável. Por isso mesmo, o País tem uma vantagem competitiva nesse quesito, por ter água, sol e vento para gerar energia em abundância.

Apesar de o cenário ser positivo, o que será discutido nas próximas páginas deste especial são quais são as lições de casa que precisam ser feitas para o Brasil não perder oportunidades estratégicas. Tanto para o consumidor quanto para as indústrias, a energia brasileira ainda é cara. Em termos de matrizes energéticas para uma transição sem sobressaltos do mundo do petróleo para o mundo renovável, até que ponto o gás natural merece ter maior atenção?

Além do médio e longo prazos, o setor também foi fortemente atingido pela pandemia e as empresas estão buscando soluções em seus cotidianos para virar rapidamente o jogo. Inclusive investindo em tecnologia e se preparando, por exemplo, para uma das grandes revoluções que vêm por aí, a do Mercado Livre de energia.

Transição renovável deve considerar abastecimento

A modernização do setor elétrico brasileiro passa necessariamente pela trinca “3 D” (descentralização, descarbonização e digitalização), como prevê o Plano Nacional de Energia (PNE) 2050 que a EPE colocou em consulta pública há poucos meses. Mas tão importante quanto planejar o ritmo da irreversível transição energética para as fontes mais renováveis é não perder de vista a necessária análise da segurança no fornecimento aos consumidores. O alerta é do sócio e cofundador do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), Bruno Pascon.

O executivo acredita que o excessivo foco que a Empresa de Pesquisa Energética dá no plano à matriz elétrica e especificamente à evolução das energias renováveis intermitentes, como a solar e a eólica, significa na prática redobrar a aposta num modelo que se encontra submetido a variáveis cada vez mais imprevisíveis. “O planejamento de longo prazo precisa levar em conta as mudanças climáticas, o aquecimento global”, avalia.

A CBIE Advisory publicou recentemente uma análise sobre o PNE 2050 na qual defende o uso do gás natural como energia de transição. “Não estão olhando o papel que o gás natural pode desempenhar nessa necessária transição energética, especialmente pelo potencial oferecido pelo pré-sal nos próximos 10 anos”, exemplifica.

“A descentralização deve olhar o custo sistêmico e não só o preço.”

A análise da CBIE é que o Brasil já possui uma das matrizes mais limpas de todo o mundo, com a participação de renováveis chegando a 80% se considerada apenas a geração elétrica e a 46% quando contabilizadas também as fontes fósseis. No restante do mundo essas taxas são bem menores, de 27% e 16%, respectivamente.

Com esse perfil, o Brasil acaba contribuindo apenas com 3% das emissões de CO2 globais. Portanto, considera o executivo, os esforços de descarbonização no País podem ser feitos sem replicar modelos de países onde a matriz é mais “suja” e mais sensíveis a pressões internas e externas. “Considerando as políticas de ESG (sigla em inglês para o triângulo ambiental, social e governança), estamos bem de “E” e esquecemos o ‘S’, oferecendo tarifas muito altas”, afirma Pascon.

O diretor da CBIE sugere olhar outros exemplos do exterior, como o da China. O gigante asiático tinha no início dos anos 2000 cerca de 70% de sua matriz em fontes a carvão e investiu pesado nos últimos 15 anos em capacidade eólica e solar, derrubando essa taxa para 52%. Mas crescendo a taxas superiores a 6% ao ano, o país se preocupou com a confiabilidade do sistema e busca agora estimular a construção de usinas termelétricas a gás natural. O objetivo, com isso, é levar o patamar dessa fonte dos 6% atuais da matriz para 15% em poucos anos.

Geração distribuída tem potencial de gerar R$ 50 bi, indica estudo do setor

O mercado de geração distribuída, ou seja, a produção de energia elétrica de pequeno porte realizada junto ao próprio agente consumidor, cresce a cada ano e tem um potencial de negócios de R$ 50 bilhões em uma década. Essa é a estimativa de Carlos Evangelista, presidente da Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD). Ele toma por base estimativas de mercado do relatório Bloomberg New Energy, que prevê que 32% da matriz energética brasileira será solar em 2040. E que 75% disso se dará na geração distribuída.

Esse caminho rumo à descentralização é explicitado por dados oficiais. Segundo a última Resenha Energética Brasileira, divulgada pelo Ministério das Minas e Energia em maio, a potência instalada de geração distribuída no País chegou naquele mês a 2.942 MW, sendo 94% baseados em energia solar. Na data, eram 310 mil unidades consumidoras recebendo créditos, para 237 mil unidades geradoras.

Boa parte das projeções otimistas está enraizada nas mudanças de tecnologia de comportamento dos consumidores observadas nos últimos anos. A maior utilização de carros elétricos é um exemplo citado por Evangelista, dada a necessidade de estrutura para recarga. Estimativas recentes apontam que a frota mundial desses veículos será de 85 milhões de unidades já em 2025, número que saltará para 240 milhões em 2030. Incluindo motos e motonetas, a frota eletrificada pode chegar a 400 milhões.

“Temos também a perspectiva de melhor aproveitamento dos resíduos sólidos urbanos para a produção de biogás. São cerca de 3,8 mil aterros sanitários no Brasil. O que é um problema ambiental se transformará em energia”, afirma o presidente da ABGD.

Prédios públicos

As aplicações da energia gerada são variadas. Evangelista destaca projetos de eficiência energética em prédios públicos. “Há um projeto no Estado de São Paulo para dotar todos os 30 mil prédios públicos com essa tecnologia. Se pensarmos que no Brasil existem mais de 180 mil edifícios públicos, é um caminho interessante”, explica. Mesmo admitindo que alcançar todo esse universo talvez não seja possível, ele lembra que o setor já conversa com prefeitos e vereadores da Amazônia sobre esse tipo de transição.

A associação trabalha também em questões de segurança dessas instalações de geração distribuída. “Temos dois tipos de certificação. A primeira, de montador fotovoltaico, tem dois anos e foi feita em parceria com o Senai, que tem ótima capilaridade. Envolve prova teórica e prática. A segunda é de responsável técnico”, lista.


Desequilíbrio financeiro ameaça distribuidoras

A pandemia do novo coronavírus teve um inegável impacto econômico na vida do País e a sustentabilidade financeira das distribuidoras de energia é um dos efeitos que podem gerar graves consequências em termos de investimentos futuros e de segurança no abastecimento. Além da natural queda na receita motivada pela paralisação por meses de atividades industriais e comerciais, as empresas do setor conviveram nesse período também com uma alta na inadimplência. Contribuiu para isso a proibição de cortes de energia por falta de pagamento, determinada pela Aneel de maneira geral até junho e depois apenas para consumidores de baixa renda.

Recompor essas perdas não será uma tarefa fácil. A agência reguladora emitiu uma nota técnica partindo de um argumento que o setor considera equivocado, de que a não realização da receita esperada para o período se caracterizava como um risco do próprio negócio.“É uma imprudência da argumentação nesse sentido porque houve um resultado prático de uma ação do poder público”, opina o presidente do Instituto Acende Brasil, Claudio Sales em referência a várias medidas de restrição de circulação impostas por Estados e prefeituras Brasil afora.

Sales destaca que a chamada Conta-Covid, um crédito emergencial liberado para o setor a partir de junho e que alcançou R$ 16 bilhões, atendeu apenas uma ponta da cadeia, a das empresas de geração e transmissão e dos encargos subsidiados, conhecida como parcela A dos custos. A parcela B, que engloba os custos operacionais das distribuidoras, ficou de fora. Isso afeta diretamente investimentos para expansão da rede, a operação em si e as remunerações de capital de empréstimos e de acionistas.

Os grandes grupos de distribuição tentam no momento manejar seus negócios da melhor maneira à espera de uma nova resolução da Aneel. A CPFL Energia, que atende quase 10 milhões de consumidores em cerca de 700 cidades, informou em seu último relatório financeiro que tem negociado prazos com fornecedores de equipamentos, avaliado com bancos condições relacionadas a empréstimos, monitorado variações de indicadores que possam afetar financiamentos e instrumentos como debêntures e estudado as reduções do mercado faturado .A empresa também tomou medidas para controlar a inadimplência.

A Enel Distribuição São Paulo, que atende cerca de 18 milhões de consumidores em 24 municípios paulistas, reportou em seu último balanço uma queda de 8,2% na venda de energia nos primeiros nove meses de 2020. A companhia também tomou suas medidas para mitigar os desequilíbrios deste momento e destacou em seu relatório ganhos de eficiência nas estruturas de apoio e digitalização de processos e uma receita adicional resultante da venda de terrenos previamente destinados à alienação.

O presidente do Acende Brasil prefere não estimar o montante necessário para reequilibrar as operações das companhias do setor e prefere esperar os resultados da segunda consulta pública da agência reguladora. “É preciso primeiro passar pelo estágio de reconhecer o impacto no equilíbrio financeiro e depois estabelecer a metodologia dessa recomposição”, pondera.

O problema é que qualquer pedido de reajuste extraordinário de tarifas vai sempre lembrar o “carma” do setor de tornar-se um vilão para consumidores, órgãos de defesa como o Procon e agentes públicos. Sales  atribui isso a uma corrente de desinformação. “De cada R$ 100 na conta de luz, a distribuição fica com apenas R$ 18”, calcula.

Empresas tentam segurar inadimplência

Mesmo com a revisão da resolução normativa da Aneel que permitiu às distribuidoras desde agosto a possibilidade de voltar a cortar o fornecimento de energia para consumidores inadimplentes, as empresas têm adotado uma política de cautela. A aposta é na comunicação de regras e prazos e na oferta de formas de pagamento e de renegociação de dívidas.

A CPFL Energia informou à reportagem que durante todo o ano trabalhou no sentido de oferecer condições de pagamento diferenciadas aos clientes, permitindo por exemplo o pagamento de contas via cartão de crédito e parcelando os débitos em até 12 vezes. “Além de campanha de incentivo aos clientes aptos a aderirem à tarifa social, para se cadastrarem e receberem o desconto na conta de energia”, disse a companhia por e-mail.

Essa diversificação de medidas tem ajudado também na operação financeira. Segundo a CPFL, a inadimplência caiu 42,9% no terceiro trimestre deste ano comparado com a do mesmo período do ano passado. “Reforçamos com os nossos clientes a importância de manterem as contas em dia”, informou.

Para os clientes B2B, a empresa aproveitou a expertise da CPFL Soluções para oferecer um serviço de estudo e busca de soluções de economia, previsibilidade e segurança energética. A mesma área oferece uma assessoria para quem quiser fazer parte do mercado livre de energia, além de projetar, construir e operar sistemas próprios de geração.

Enel, Cemig e Copel

A Enel, por sua vez, informou que tem realizado diversas ações para reduzir os níveis de inadimplência, como o envio massivo de SMS e e-mails das faturas em atraso, e incentivado a utilização de meios digitais para pagamento, parcelamento de faturas. Também foi disponibilizado um canal de negociação para equacionar os valores em aberto.

A Cemig inovou com uma campanha de renegociação via WhatsApp, obtendo 20,3 mil acordos de parcelamento envolvendo valores de R$27,2 milhões. A companhia de distribuição de Minas Gerais também passou a receber as contas com cartão de crédito e débito. Com os maiores inadimplentes e clientes do varejo foram renegociados R$140 milhões até o terceiro trimestre, de acordo com dados das demonstrações financeiras.

A paranaense Copel também apostou na diversidade de canais para comunicar melhor sobre os riscos de cortes. Os avisos de contas em atraso estão sendo feitos por e-mail, SMS e nas faturas de energia. Os clientes têm uma agência virtual para atualizarem seus cadastros. É possível consultar débitos, obter segunda via de contas e até fazer pagamentos via código de barras. Os débitos até R$ 10 mil reais podem ser pagos ou parcelados no site da Copel ou por uma linha 0800.

Brasil é modelo em geração de energia limpa

A matriz energética do Brasil é três vezes mais sustentável que a média global. Enquanto 46,1% da energia produzida no País para os mais diversos fins comerciais e residenciais – iluminação, aquecimento, abastecimento de máquinas, transporte, preparação de alimentos – provém de fontes renováveis, o patamar mundial está em apenas 14,2%.

Quando falamos da matriz elétrica, que diz respeito exclusivamente às formas de geração de energia elétrica, a proporção em relação à média global é mantida, mas com um cenário ainda mais sustentável: 82,9% da energia elétrica que o País produz vem de fontes renováveis, ante a média global de 26,7%.

A maior adoção pelo Brasil de fontes renováveis é resultado principalmente de dois projetos bem- -sucedidos desenvolvidos ao longo de décadas. Um deles é a ampla adoção de usinas hidrelétricas, origem de quase dois terços da energia elétrica produzida atualmente no País.

O outro é a utilização de etanol de cana-de-açúcar como combustível de automóveis, principal fonte renovável da matriz energética nacional. No ano passado, o País consumiu 32,8 bilhões de litros, o que representou um crescimento de 10,5% em relação ao ano anterior.

Em 2020, a pandemia fez o consumo de etanol regredir em 15%, mas a expectativa do mercado para 2021 é positiva, inclusive por causa da visão de que a crise da covid-19 está contribuindo para acelerar projetos de sustentabilidade ao redor do planeta.

“Neste momento em que o mundo todo discute a retomada verde, é importante destacarmos as vantagens do etanol para a redução de emissões de gases de efeito estufa e de poluição em grandes metrópoles”, afirma Antônio de Pádua Rodrigues, diretor técnico da União da Indústria de Cana-de- -Açúcar (Única).

Energia eólica se expande

Mesmo com o quadro privilegiado em relação à média global, o Brasil tem conseguido bom desempenho ao impulsionar ainda mais a produção de energias renováveis. Um exemplo é o crescimento da geração eólica. Com 7.578 aerogeradores instalados em 619 parques eólicos ao final de 2019, o País vem galgando posições no ranking global de produção de energia pela força dos ventos – já chegou à oitava posição, de acordo com o Global Wind Energy Council (GWEC).

E deve subir ainda mais, graças a investimentos de R$ 67 bilhões ao longo da última década – sendo R$ 13 bilhões só no ano passado. Considerando leilões já realizados e os contratos firmados no Mercado Livre de energia, a Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) projeta que a capacidade instalada no País chegará a 24 GW até 2024, aumento de 50% em relação ao patamar atual.

O aumento da escala e a adoção de novas soluções técnicas vêm contribuindo para uma forte redução dos custos da energia eólica ao longo da última década no Brasil. De acordo com dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), o preço médio do MWh caiu no período de R$ 262,35 para R$ 100,70, retração acima de 60%. Com isso, o preço médio da energia eólica (R$ 174,90) foi o segundo menor entre todas as fontes energéticas, perdendo apenas para as usinas hidrelétricas (R$ 169,30).

Gás natural, energia de transição

Outra alternativa relevante para o Brasil na década que está começando é aumentar a exploração do gás natural, considerada a modalidade perfeita para sustentar a transição entre uma matriz energética predominantemente composta por fontes não renováveis para uma matriz de maioria renovável.

“Aumentar a participação do gás natural na nossa matriz energética seria um contraponto para a crescente participação das fontes intermitentes, que têm como característica a dependência de fatores variáveis, como a força dos ventos, a incidência de sol e a vazão dos rios”, diz Efrain Cruz, diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

Um dos benefícios diretos desse processo seria a redução da volatilidade do preço da energia no Brasil. É um problema que a população brasileira está sentindo neste momento. O baixo nível dos reservatórios e a previsão de poucas chuvas em dezembro fizeram o Operador Nacional do Sistema (ONS) lançar um alerta sobre dificuldades no abastecimento de energia, base da decisão da Aneel de autorizar cobrança extra na conta dos consumidores.

Desafios da ampliação do gás natural

A produção brasileira de gás natural subiu 9,5% no ano passado, o que permitiu a redução de 7,5% nas importações. A rede de gasodutos cresceu 5,1% – foram 1.780 km adicionais. São números ainda tímidos, no entanto, considerando o potencial de crescimento da produção nacional. O País está na 29ª posição no ranking mundial.

Há a perspectiva real de um salto na produção de gás natural no Brasil ao longo dos próximos anos, por conta das reservas comprovadas do pré-sal – 360 bilhões de metros cúbicos. Com isso, o País poderá passar da condição de tradicional importador para se tornar autossuficiente nesse recurso.

Para dar vazão ao potencial representado pelas reservas de gás natural no pré-sal, é preciso que haja uma demanda regular no mercado interno. Espera-se que a aprovação do novo marco regulatório do setor, ao final de quase dez anos de tramitação, contribua para aumentar a segurança jurídica e atrair investidores.

Concentração na costa

A utilização de gás natural no Brasil está muito concentrada nas regiões costeiras. O Estado que mais consome gás no País, hoje, é São Paulo, que já tem três grandes concessionárias desenvolvendo o mercado de gás e mais de dois milhões de residências alcançadas.

Hoje, mais de 80% do gás brasileiro é extraído junto com o petróleo. Sem demanda suficiente, a solução encontrada tem sido reinjetar boa parte do gás nos poços, com a perspectiva de que venha a ser retirado no futuro.

Só o crescimento da demanda justificaria os investimentos para construir gasodutos e instalar térmicas em pontos estratégicos dos percursos até capitais e cidade importantes ainda não abastecidas, como Brasília, Goiânia, São Luís, Teresina, Belém, Londrina e Uberlândia.

Sem tempo a perder

O planeta inicia a década de 2020 em meio a uma pandemia e com um grande desafio a enfrentar: reduzir drasticamente a poluição atmosférica para frear os efeitos do aquecimento global.

Aumentar a produção de energia limpa é a principal diretriz para um mundo mais sustentável. Mesmo desfrutando de uma posição privilegiada no que diz respeito à sustentabilidade da matriz energética e da matriz elétrica, o Brasil tem avançado na geração de energia renovável.

Uma aposta do setor elétrico para impulsionar ainda mais a sustentabilidade do sistema no Brasil é a ampliação do Mercado Livre de energia. Trata-se de um ambiente em que o cliente pode escolher entre vários fornecedores e negociar livremente as condições de contratação de energia elétrica, a exemplo do preço, do volume e até da modalidade – pode-se optar por receber 100% de energia eólica, por exemplo.

“O Mercado Livre funciona como um contraponto ao atual modelo comercial, indutor de ineficiência e gerador de elevados preços da energia no Brasil”, diz Reginaldo Almeida de Medeiros, presidente executivo da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel).

Além do preço menor para o consumidor, com redução média de 34% no ano passado, de acordo com dados da Abraceel, o Mercado Livre tem o incentivo à sustentabilidade como outro grande atrativo em potencial. “Praticamente toda a expansão da energia renovável que vem sendo feita no Brasil é destinada ao Mercado Livre”, diz Medeiros.

Um exemplo: a energia fornecida no Mercado Livre pela Enel Trading, nova comercializadora de energia do Grupo Enel, é inteiramente renovável e certificada. De origem italiana, a Enel Brasil é o maior grupo privado de distribuição de energia elétrica do País em número de clientes, levando energia para cerca de 18 milhões de consumidores em quatro Estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Goiás.

Líder no desenvolvimento das fontes renováveis, a companhia é a maior produtora de energia eólica e solar do Brasil, por meio da Enel Green Power. Possui atualmente capacidade instalada renovável total de cerca de 2,9 GW, dos quais 782 MW são de fonte eólica, 845 MW de solar e 1.269 MW de hidro.

Poder de negociação

Por enquanto, direcionado exclusivamente a pessoas jurídicas com demanda contratada mínima de 500 kW, o Mercado Livre está ao alcance de aproximadamente 27 mil unidades consumidoras no País – incluindo vários tipos de indústria, shoppings, redes de hotéis, supermercados e hospitais.

Há, no entanto, um cronograma de redução do patamar de consumo necessário para acessar esses benefícios. Com isso, a participação do Mercado Livre no consumo total no País deve subir nos próximos anos dos atuais 30% para a faixa de pelo menos 50%.

Grandes players estão desenvolvendo estratégias para participar desse processo. A CPFL Soluções, pertencente ao Grupo CPFL – que desde 2017 integra a State Grid, maior companhia do setor no mundo –, oferece serviços de consultoria para identificar possibilidades de aprimoramento na relação das empresas com a energia. Uma das principais linhas de negócios é justamente a intermediação entre quem vende e quem compra energia no Mercado Livre.

Espera-se que mudanças na legislação ampliem o acesso ao Mercado Livre para usuários domésticos, por meio da portabilidade da conta de energia. Muitos especialistas no setor consideram que, em termos de benefícios à população, esse processo pode ser comparado à abertura do mercado de informática ou ao fim do monopólio estatal nas telecomunicações, na década de 1990.

“A possibilidade de escolha do produto e do fornecedor aumentará a concorrência, trazendo para o consumidor um maior poder de negociação. No futuro, esperamos que consumidores estejam maduros o sufi ciente para comprar energia em plataformas digitais”, diz Javier Alonso, diretor de Gestão de Energia e Comercialização da Enel no Brasil.

Geração doméstica

Do ponto de vista da população, a maior preocupação em relação à energia elétrica ainda é o preço. Pesquisa feita em agosto pelo Ibope Inteligência, sob encomenda da Abraceel, revelou que 84% dos consumidores brasileiros consideram que o preço da energia elétrica é “alto” ou “muito alto”, ante apenas 14% que acham justo e 2% que consideram “baixo” ou “muito baixo”. A pesquisa é feita anualmente e desde 2015 o patamar de insatisfeitos com o preço vem se mantendo acima de 80%.

Dos entrevistados, 63% disseram que gostariam de trocar imediatamente de fornecedor de energia elétrica se tivessem essa possibilidade. O principal motivo seria a busca por preços mais baixos, apontada por 64% desses consumidores. Houve, contudo, uma surpresa: o segundo motivo mais citado foi o interesse por fontes mais limpas de energia (17%), item que ficou acima do desejo por maior qualidade no atendimento (15%).

Outro dado marcante da pesquisa é que 90% dos consumidores afirmaram que gostariam de gerar energia elétrica na própria casa, caso tivessem condições para isso. Na verdade, essa possibilidade já existe e a maioria das pessoas nem sabe, ou então imagina que o investimento não dá retorno – o que, em muitos casos, já não é verdade. Com a queda dos custos das novas tecnologias, aliar sustentabilidade e economia vem se tornando uma equação cada vez mais viável.

A possibilidade de micro e minigeração, que alia a economia financeira à consciência socioambiental, está prevista pela Aneel desde 2012. Naquele ano, uma resolução normativa da agência estabeleceu parâmetros para o consumidor ou um grupo de consumidores (como num condomínio, por exemplo) gerar sua própria energia elétrica a partir de fontes renováveis.

Uma das vantagens oferecidas ao consumidor que produz sua própria energia é ganhar créditos quando a geração em um determinado mês ultrapassa o consumo. Esse crédito pode ser usado nos meses seguintes ou até mesmo em outras unidades consumidoras do mesmo titular.

Empresas se concentram no meio ambiente

Além de trabalhar para o crescimento das modalidades de produção sustentável de energia no Brasil, as empresas do setor estão empenhadas em dar o exemplo ao adotar ações ambientalmente corretas em seus processos internos.

A Companhia Paranaense de Energia (Copel), por exemplo, desenvolveu um programa de redução do uso de papel para impressão, depois de ter concluído que nos últimos cinco anos consumiu o equivalente a 7 mil árvores só nesse item. A queda alcançada no primeiro semestre deste ano foi de 50% em comparação ao semestre anterior – a adoção do trabalho remoto por conta da pandemia ajudou a conscientizar as pessoas sobre a importância de evitar o uso de papel e de usar os dois lados da folha sempre que possível.

Influenciar positivamente os consumidores é outra missão das empresas do setor elétrico. O Grupo Neoenergia, que reúne distribuidoras como Coelba, Celpe, Cosern e Elektro, aplica 0,4% das receitas operacionais líquidas em ações que incentivem mudanças de hábitos para o consumo consciente e estimulem o desenvolvimento e a consolidação de novas tecnologias que reduzam o consumo de energia elétrica.

As ações são voltadas especialmente aos consumidores de baixa renda, por meio de projetos de substituição de lâmpadas incandescentes e fluorescentes por LED e campanhas de educação. Há também incentivo à prática de reciclagem – o programa Vale Luz concede descontos nas faturas em troca da entrega de resíduos a cooperativas e indústrias que fazem o reaproveitamento desses materiais.

Fontes limpas unem inovação e modernidade

Diante de um contexto de avanços tecnológicos cada vez mais rápidos e de provas de mudança de comportamentos e exigências dos consumidores no sentido de uma economia digitalizada, conectada, compartilhada e ambientalmente responsável, o planejamento energético brasileiro para as próximas décadas inclui necessariamente as contribuições que possam ser trazidas pela eficiência energética e a inserção de fontes modernas e disruptivas.

A chamada eficiência energética, que é o contínuo aperfeiçoamento do uso racional das fontes existentes e a inserção de outras fontes mais econômicas, pode contribuir com 15% a 20% do total de redução do consumo total de energia em 2050, de acordo com projeções do Plano Nacional de Energia elaborado pela EPE. Isso equivale a algo como 40 GW médios. E essa projeção pode até ser ultrapassada. A CBIE Advisory, por exemplo, acredita que o relatório subestima o avanço da utilização dos carros elétricos (VEs) e do futuro papel a ser desempenhado pelo biogás na geração distribuída.

O presidente da Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Conservação de Energia (Abesco), Frederico Araújo, concorda com essa visão mais otimista. Para uma fácil visualização, ele cita o tema da iluminação pública, uma vez que prevalece na maioria das cidades brasileiras de todas as dimensões o uso de tecnologia antiga como as lâmpadas de vapor de sódio. “O uso de LED pode gerar economia de até 70% de energia em horários de pico”, estima.

Essa “cultura do desperdício” é generalizada nacionalmente na opinião de Araújo e só passa por mudanças bruscas em tempos de crise. Ele lembra que foi apenas no chamado “apagão” de 2001 que o brasileiro reduziu o uso de freezers domésticos e que passou a buscar equipamentos com o selo Procel.

Nessas mudanças, os processos de digitalização também trazem grande contribuição porque muitas empresas têm investido na gestão da energia com base em tecnologia, criando e usando hardwares e softwares sensoriais que captam dados e tomam as soluções. “Já temos uso de inteligência artificial e de machine learning. Uma monitoração em tempo real pode gerar economia de 15% a 20% no consumo de energia”, calcula.

Uma grande contribuição para esse uso eficiente da energia e que já está inserido no moderno contexto de economia circular e da descentralização do fornecimento é a cadeia da bioenergia. Novas empresas e startups como a ZEG Energia Renovável já tiraram seus projetos das planilhas e estão operando comercialmente na transformação de resíduos sólidos urbanos e nas sobras da produção do agronegócio em fontes limpas como o biogás e biometano.

Segundo Daniel Rossi, CEO da ZEG e sócio da investidora Capitale Energia, a subsidiária ZEG Biogás é pioneira em capturar o metano gerado de aterros e conseguiu desenvolver uma tecnologia de biodigestores que permite o crescimento do negócio de forma modular, portanto acompanhando a demanda. “O aterro sanitário passa a fornecer energia para rede elétrica e a produzir biocombustível. E o agronegócio vai ser um dos maiores produtores de biogás do mundo. Isso vai trazer eficiência ambiental e energética”, prevê Rossi.

Na ponta urbana, a primeira planta da ZEG foi instalada no bairro paulistano de São Mateus e vai aproveitar o biogás do Centro de Tratamento de Resíduos Leste. Segundo a empresa, tem potencial para produzir 90 mil metros cúbicos de combustível por dia. No agronegócio, um dos destaques é o projeto no Pará de aproveitamento dos rejeitos do uso do óleo de palma da MarBorges Agroindustrial.

A unidade ZEG Ambiental consegue transformar o resíduo em biogás, que volta como eletricidade para a própria fábrica. E no final do processo ainda gera uma água limpa que é usada na irrigação.

No futuro, mercado será pulverizado e limpo

No horizonte, surge um mercado de energia passando do tradicional modelo centralizado para a pulverização na produção e no fornecimento. Além disso, o número de players deve crescer e novas fontes de energia, cada vez mais limpas, também estarão presentes. Essa é previsão de Sami Grynwald, diretor da consultoria Thymos Energia, para o cenário nacional. “Hoje, o medidor é unidirecional, mas no futuro todo mundo vai poder ser gerador de energia e poderá vendê-la”, afirma o consultor, que lembra que muitos bancos e empresas de investimentos já têm aportado recursos nesses projetos.

Para Grynwald, o hidrogênio desponta como combustível do futuro. De fato, no PNE 2050 da Empresa de Pesquisa Energética essa fonte tem espaço relevante entre as outras consideradas disruptivas. Principalmente porque suas aplicações podem contribuir para metas de descarbonização, armazenamento e segurança no abastecimento. “Em princípio, é um concorrente para o diesel e para o óleo combustível. E pode ser uma alternativa para a Região Norte, que tem problemas para entrar no Sistema Interligado Nacional”, opina o consultor.

A EPE também coloca como uma possibilidade o aproveitamento da chamada energia dos oceanos, ou das marés, baseada em um estudo de 2013 da Coppe que estimou um potencial teórico de 114 GW para o litoral brasileiro. Grynwald pondera, no entanto, que, a despeito de um projeto-piloto nesse sentido estar em andamento no Ceará, não acredita nessa fonte como um contribuidor importante no futuro.

A geotermia, que é o aproveitamento de energia térmica do subsolo superficial, é outra tecnologia que entrou no planejamento da EPE para 2050. Embora já esteja em uso na área de edificações de alguns países desenvolvidos e na Bolívia, o uso do calor da terra deve ter pouca força no Brasil, segundo o diretor da Thymos.

Se há uma projeção da EPE que Grynwaldconfia e concorda é na importância cada vez maior que as inovações tecnológicas em biotecnologia vão trazer para a matriz energética nacional. O potencial do uso de resíduos para a geração de eletricidade e combustível é enorme na opinião do consultor. “Caso todo o potencial gerado em aterros sanitários fosse aproveitado, daria entre 3,5 GW e 4 GW, praticamente o mesmo que Belo Monte”, compara. Uma curiosidade citada por Grynwald é que essa transição da matriz do modelo hídrico para o térmico, que é mais caro, permitiria puxar as tarifas para baixo devido ao estímulo à competição.

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