CEEE, estatal endividada, mas ainda atraente ao investidor

Data da publicação: 19/12/2020

19/Dez/2020, Zero Hora – Porto Alegre – Presente em 72 municípios, o braço de distribuição da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE-D) caminha para a privatização mergulhado em uma dívida bilionária. O buraco nos cofres é estimado em cerca de R$ 7 bilhões e, segundo analistas, está relacionado a fatores que ficaram visíveis em diferentes períodos da trajetória da estatal. Problemas de gestão, desembolsos com ações judiciais e despesas com funcionários do tempo em que a CEEE era uma autarquia ajudam a explicar o desequilíbrio (mais detalhes ao lado).

Apesar das dificuldades, a distribuidora tende a atrair interessados no leilão de privatização, agendado para 3 de fevereiro de 2021. Um dos pontos que sustentam a projeção é o potencial do mercado da companhia, bastante concentrado na Região Metropolitana, indicam analistas. Na visão deles, o desembarque de investidores pode resultar em aumento de aportes na empresa e, consequentemente, ganhos de eficiência.

A CEEE-D distribui energia para cerca de 4 milhões de pessoas, em 1,7 milhão de unidades consumidoras, na Grande Porto Alegre e nas regiões Sul, Campanha e Litoral. A Região Metropolitana responde por 57% do consumo e 59% do faturamento. Ou seja, a operação mais concentrada, em tese, favoreceria a busca por eficiência.

– Sem dúvida, no setor de distribuição de energia, a concentração facilita. Há mais funcionalidade para o investidor. Hipoteticamente, em uma região de consumo muito disperso, é necessário levar uma linha de distribuição bem maior – pontua Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil.

Penúria

Nos últimos anos, a concessão da CEEE-D esteve ameaçada pela penúria financeira e pelas dificuldades para alcançar indicadores de qualidade estipulados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que regula o setor. A maior parte da dívida da companhia é de ICMS, cujo ritmo de crescimento vem se intensificando. A previsão é de que o atraso no repasse do tributo chegue a R$ 4,4 bilhões até abril de 2021, quando o comprador deve assumir a estatal.

Para a venda, a CEEE-D teve de receber aporte de capital do governo do Estado de cerca de R$ 3,3 bilhões. A maior parte, em torno de R$ 2,8 bilhões, vem do perdão parcial da dívida de ICMS. Assim, o novo acionista pagaria, de forma parcelada, o restante do imposto devido (R$ 1,6 bilhão). A operação, segundo o governo, é necessária para garantir o preço mínimo simbólico de R$ 50 mil no leilão de fevereiro.

– Do ponto de vista econômico e financeiro, a companhia tem dificuldade para fazer os ajustes necessários – diz o secretário estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos Júnior. – Temos de encarar o problema de frente, e não tapar o sol com a peneira – acrescenta.

Para André Trein, que acompanha o setor e é sócio da Bateleur, empresa especializada em fusões e aquisições, a privatização ocorre em um momento de “confluência de fatores”:

– O Estado está em condição fiscal apertada, e a CEEE-D tem grande endividamento. O governo abre mão de um pedaço do ICMS para recuperar outro.

No meio sindical, a operação é alvo de críticas. Presidente da Central Única dos Trabalhadores no Estado (CUT-RS), Amarildo Cenci lamenta a venda de uma estatal em setor de grande peso na economia:

– Entendemos que, em um país com pobreza como o Brasil, alguns ativos têm de ser controlados pelo Estado.

Consultor na área de energia, Ronaldo Lague ressalta que as dificuldades financeiras da CEEE-D se intensificaram ao longo das décadas – o Grupo CEEE nasceu a partir da Comissão Estadual de Energia Elétrica, criada em 1943. Ex-funcionário da companhia, Lague entende que o Estado “até pode vender” o braço de distribuição, mas reprova a privatização da CEEE-GT. Em situação mais confortável, o braço de geração e transmissão de energia deve ir a leilão depois da CEEE-D.

O histórico

1943 – É criada a Comissão Estadual de Energia Elétrica (CEEE), então subordinada à Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas

1952 – A CEEE é transformada em autarquia – tipo de instituição pública que reúne poder sobre setor específico

1961 – Lei estadual, no governo Leonel Brizola, transforma a autarquia em sociedade por ações, denominada Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). À época, a lei estipulou que os servidores da antiga autarquia passariam a ser empregados da CEEE. Ex-autárquicos tiveram preservados direitos como o de ganhar, na inatividade, igual valor pago ao pessoal da ativa – a CEEE teria de completar o valor do benefício

1963 – A companhia vira sociedade de economia mista (ações da estatal são compartilhadas entre Estado e mercado, mas o poder público é o maior detentor dos papéis com direito a voto)

1981 – O custo com ex-autárquicos deixa de ser reconhecido na tarifa de luz pelo órgão regulador do setor. Os gastos, então, passam a gerar grande impacto no caixa da empresa ao longo dos anos

1997 – Leilão no governo Antônio Britto privatiza dois terços da companhia, dando origem à RGE e à AES Sul, hoje unificadas. À época, foram arrecadados R$ 3,14 bilhões. Operação reforçou o caixa do Piratini, com possíveis vantagens no atendimento ao consumidor, mas encolheu a capacidade de geração de receitas da CEEE, que também herdou o passivo do grupo

2006 – É criada a holding CEEE-Participações. Na prática, funciona como controladora da CEEE-D, que faz a distribuição de energia, e da CEEE-GT, que atua na geração e na transmissão de eletricidade

2015 – A concessão da companhia é renovada por 30 anos, com cláusulas de desempenho financeiro e de qualidade de serviço. Dificuldades de caixa ameaçam futuro da CEEE-D

2019 – Assembleia Legislativa autoriza a privatização

2020 – Edital da venda é publicado

2021 – Leilão da CEEE-D previsto para ser realizado em 3 de fevereiro

Capacidade de gestão e cumprimento de metas

Caso saia do papel, a privatização da CEEE-D acende a possibilidade de maiores investimentos na companhia. Mas, para que os aportes resultem em melhora nos indicadores de qualidade, também é necessário o acompanhamento rígido das metas pelo poder público, frisam analistas. Essa atividade regulatória cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

A partir da assinatura do contrato de concessão, o grupo privado que assumir o controle da CEEE-D terá o desafio de aperfeiçoar a gestão da empresa para equilibrar as contas e fazer aportes necessários, sinaliza Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil:

– A atividade de distribuição de energia é totalmente regulada. As obrigações estarão no contrato de concessão. Dito isso, a questão que se coloca é se o acionista é capaz de cumprir as metas ou não. A gestão estatal não é mais capaz de fazer isso. Já o investidor privado pode, tem a perspectiva de obter retorno no longo prazo.

Apesar da possibilidade de ganhos de eficiência, analistas ponderam que a melhora nos serviços para o consumidor não virá do dia para a noite. Ou seja, há chance de a população atendida perceber avanço nos serviços, mas não de maneira tão imediata.

– Para que haja adequação a padrões de qualidade, é necessário investir, e investimentos levam tempo para maturar e ter resultados. É natural e legítimo que o consumidor pense na privatização hoje e queira melhora já amanhã. Mas é preciso ter essa noção de esclarecimento – diz o consultor Paulo César Cunha, da FGV Energia.

Nos últimos anos, a concessão da CEEE-D esteve ameaçada pelo fato de a companhia não alcançar indicadores de qualidade definidos pela Aneel. Há dois principais: Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora (DEC) e Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora (FEC). O DEC aponta, em média, o número de horas em que o consumidor fica sem fornecimento de energia no ano. Já o FEC indica quantas vezes houve interrupção no serviço. Em 2019, o DEC apurado junto à CEEE-D foi de 18,59 horas, e o limite estipulado havia sido de 10,28. No FEC, o valor apurado foi de 10,11 interrupções. A meta era de até 8,19.

Ana Carla Abrão Economista e sócia da consultoria Oliver Wyman

RADIOGRAFIA
“O primeiro desafio é o de esclarecer a sociedade”

Distribuidora de energia elétrica em Goiás, a Celg-D foi vendida à italiana Enel em 2016. Secretária estadual da Fazenda à época, Ana Carla Abrão lembra que a companhia goiana enfrentava dificuldades de caixa, em situação parecida com a da CEEE-D.

Quais foram os maiores desafios no processo de privatização da Celg-D?

O principal desafio é de comunicação: mostrar para a população que a privatização não significa que a empresa vai embora. Lembro que, muitas vezes, as pessoas falavam: “Ah, Goiás vai perder a Celg, a Celg vai embora de Goiás”. A Celg não vai para lugar nenhum. A Celg é privatizada para ter gestão mais eficiente e um dono com capacidade de investimento. O primeiro desafio é de comunicação e esclarecimento para a sociedade. O movimento de privatização vem para resolver uma situação de baixo investimento, de baixa qualidade de prestação de serviço, de salários muitas vezes completamente fora dos padrões de mercado.

O que a senhora tem acompanhado sobre a CEEE-D?

Não estou acompanhando muito, mas me parece que é um processo muito semelhante ao da Celg. Ou seja, é uma empresa em um Estado com grande potencial. Vem sofrendo com falta de investimentos ao longo dos anos. É uma empresa que, por sua situação financeira, acaba gerando problemas para o caixa do Estado, com dificuldades no repasse de ICMS. No caso de Goiás, a Celg representava cerca de 10% da arrecadação do imposto. Então, cada vez que a Celg atrasava o repasse, colocava em risco o pagamento da folha de pessoal. Parece que a CEEE-D está nessa situação. É uma empresa muito endividada. A Celg também era assim. São situações muito semelhantes. Até por isso os desafios são parecidos, inclusive do ponto de vista de atração de investidores. Em Goiás, conseguimos vender a companhia com ágio significativo. Houve trabalho para mostrar que a deterioração da empresa foi resultado de má gestão, de uma gestão sem foco, e não de inviabilidade financeira.

O que pesou para despertar o interesse privado à época?

O fator determinante foi o potencial do mercado local. Goiás cresce mais do que a média nacional e, obviamente, vinha de processo de ajuste fiscal. Diria que os dois fatores principais foram esses. Vínhamos tratando a questão fiscal de forma muito responsável. O governador Eduardo Leite se destaca pela gestão fiscal responsável.

Para conseguir privatizar a CEEE-D, o governo estadual tem de abrir mão de parte do ICMS devido pela companhia.

É o que digo: há sempre críticas e interesses nesses processos e na manutenção de uma empresa ineficiente. Mais recentemente, o governador do Estado (Ronaldo Caiado) brigou com a Enel, que comprou a Celg. A empresa comprou uma companhia completamente sucateada, colocou R$ 5 bilhões de investimento no primeiro ano. Obviamente, o resultado demora a maturar. As pessoas criticam, mas não consideram que a alternativa à venda, e isso vale para a CEEE-D, é a quebra da empresa. Não é uma questão de “ah, comprou barato” ou “ah, a empresa não melhorou o serviço no curto prazo”. Se nada disso ocorrer, o que vai acontecer é a CEEE-D quebrar as contas do Estado, impactando, principalmente, o cidadão.

Em caso de confirmação da venda da CEEE-D, a melhora nos indicadores de qualidade do serviço tende a levar algum tempo? Não seria momentânea?

Não é do dia para a noite. Não podemos imaginar que o processo de deterioração, que levou décadas, vai ser revertido em dois ou três anos. É um processo lento. Estamos falando de infraestrutura. É um processo de troca de equipamentos, de investimento elevado. Mesmo com as críticas ao processo de privatização da Celg, os indicadores da empresa melhoraram. É um processo difícil, gera resistência. Dos meus dois anos de gestão à frente da Secretaria da Fazenda de Goiás, se tem um processo do qual me orgulho, como um legado, é a privatização da Celg, feita com transparência.

Todos os direitos reservados ao Instituto Acende Brasil