Como a crise hídrica se formou e o impacto sobre as pessoas e a economia

Data da matéria: 04/09/2021

04/set/2021, Aracaju Agora Notícias

Depois uma forte redução do consumo no ano passado em meio à pandemia, o setor elétrico enfrenta uma nova ameaça com a falta de chuvas, que comprometeu a principal fonte de geração de energia da matriz brasileira. A situação se agravou a partir de abril e reacendeu o temor de apagões e até racionamento de energia, 20 anos após a crise de 2001. O assunto vem ganhando atenção, pois representa um risco para a recuperação econômica do país.

Nesta semana, o ministro das Minas e Energia, Bento Albuquerque, fez uma declaração em emissoras de rádio e televisão nacionais, instando a população a fazer esforços para reduzir o consumo de energia elétrica. A pasta também aprovou uma nova bandeira tarifária, batizada de “Escassez Hídrica”, e lançou um programa que prevê bônus aos consumidores residenciais que economizarem energia nos próximos meses.

Como o setor elétrico entrou nessa situação?

O Brasil vive o período de seca com menos chuvas desde 1930. Por isso, os reservatórios das hidrelétricas, principal fonte de energia do país, permanecem baixos. Para compensar a queda na geração hidrelétrica, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) ativou termelétricas mais caras.

A situação é mais crítica nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, onde a energia natural afluente (quantidade de água que chega às hidrelétricas, em unidade de energia) tem ficado abaixo da média histórica nos últimos sete anos.

Apesar do forte crescimento de outras fontes de geração no país nos últimos anos, as usinas solares e eólicas dependem das condições climáticas para funcionar e podem não estar disponíveis para gerar energia em momentos de alta demanda. Portanto, é necessário ter fontes intermitentes, como térmicas, que podem ser despachadas a qualquer momento.

Qual é a diferença entre a situação atual e 2001?

A matriz energética brasileira está mais diversificada, o que reduziu a dependência de uma única fonte. Há 20 anos, as hidrelétricas respondiam por cerca de 90% da geração de energia do país, mas, desde então, o parque gerador cresceu e passou a contar com novas fontes.

Hoje, as hidrelétricas geram 63% da eletricidade brasileira. A fonte eólica já tem 11% de participação na matriz e as térmicas a gás correspondem a cerca de 9%. O Brasil também possui usinas de biomassa, geração solar fotovoltaica, termoelétricas a diesel, óleo e carvão, além de usinas nucleares.

Além disso, o país também ampliou a rede de transmissão, o que permite maior troca de energia entre as diferentes regiões. Em 2001, o país contava com 70 mil quilômetros de linhas de transmissão, extensão que ao final de 2020 já havia chegado a 145,6 mil quilômetros. Isso permite que o excedente de geração eólica produzida no Nordeste nos últimos meses, durante o período de “safra eólica”, auxilie no abastecimento de outras regiões.

O Brasil vai colocar em prática um programa de racionamento de energia?

Alguns especialistas apontam que, na prática, o país já vive uma espécie de racionamento, mas devido ao preço da energia, que desestimula o consumo. No entanto, a implantação do racionamento obrigatório, semelhante ao ocorrido em 2001, ainda está descartada pelo Ministério de Minas e Energia (MME).

A consultoria PSR estima que a necessidade de instituir um racionamento, ou seja, um programa obrigatório de redução do consumo, está atualmente em torno de 15%. Segundo estimativa do presidente da consultoria e ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Luiz Barroso, caso tal programa fosse adotado, seria necessário um pequeno alívio na carga de energia, equivalente à demanda do Sul e Sudeste do país em 5%. Isso representa cerca de 3% do consumo total de eletricidade do Brasil. “Nesse cenário, o racionamento criaria muita confusão para pouca necessidade, esse volume pode ser resolvido por manobras operatórias”, diz Barroso.

O Brasil pode ter um apagão?

A grande preocupação dos especialistas é atender a demanda nos horários de pico de consumo. À medida que a economia se recupera dos efeitos da pandemia, o consumo de energia cresce. Em julho, último dado divulgado pelo ONS, a carga no Sistema Interligado Nacional (SIN) cresceu 3,5% em relação ao mesmo mês do ano passado.

Com isso, aumentaram os temores de que a demanda de energia nos horários de pico fosse maior do que a capacidade de fornecimento e, neste caso, poderia haver apagões. O medo dos apagões vem do risco de falta de energia, já que as usinas solares e eólicas podem não estar disponíveis devido à pouca luz ou ao menor volume de vento em algum momento. Segundo estimativas do PSR, o risco de o país enfrentar problemas de energia é de 30%.

O ONS destaca que a principal preocupação é com o mês de novembro, mês que marca o fim do período de seca e o início das chuvas. “Hoje temos energia para atender a demanda, mas existe o risco de não termos energia para atender um determinado pico. Também pode haver um apagão devido ao nível de estresse a que estão submetidas as hidrelétricas ”, explica o presidente do Instituto Acende Brasil, Cláudio Sales.

O horário de verão poderia contribuir?

O horário de verão, encerrado em 2019, ajudou a reduzir o consumo de energia elétrica quando o maior uso de energia ocorreu no início da noite. No passado, a maior demanda por eletricidade ocorria quando as pessoas chegavam do trabalho – entre 18h e 20h. No entanto, as mudanças nos hábitos de consumo nos últimos anos, como o maior uso de ar condicionado pela população, fizeram com que a maior demanda por energia elétrica fosse no meio da tarde. Como resultado, a economia de energia causada pela mudança de horário não é mais significativa.

Recentemente, o governo chegou a solicitar ao ONS que atualizasse os estudos sobre a adoção do horário de verão e seus impactos no setor. No entanto, as análises concluíram novamente que a contribuição do retorno do horário de verão para a redução da demanda de energia elétrica seria nula.

Quais as principais medidas tomadas pelo governo até o momento para enfrentar a crise?

As ações começaram em outubro de 2020, ainda no período de seca, quando o governo identificou uma possível piora das condições hidrológicas. Desde então, o país despacha usinas térmicas para garantia de energia e aumenta a importação de energia dos países vizinhos. Mais recentemente, foi aberta uma chamada para geração adicional por meio de termelétricas não contratadas.

Em outra frente, o governo passou a trabalhar na flexibilização das restrições hidráulicas, como cotas mínimas, estudos para a permanência da flexibilização no período chuvoso e também a adoção da flexibilização temporária.

Do lado da gestão da demanda, foram lançados dois programas de redução voluntária, um direcionado às indústrias e outro aos consumidores do mercado cativo.

No caso das indústrias, a ideia é que as empresas possam oferecer ao ONS reduções no consumo de energia, realocando sua produção para horários em que o sistema elétrico é menos demandado. Em troca, eles recebem uma compensação financeira.

Para os consumidores cativos, como os residenciais, o programa do governo prevê o pagamento de bônus na conta de luz para quem atingir a meta de redução do consumo. O bônus será pago para quem reduzir o consumo em pelo menos 10%, no somatório do consumo de setembro a dezembro de 2021. O valor do bônus é de R $ 0,50 por quilowatt-hora (kWh) do total de energia economizada neste período .

E para 2022, qual é o cenário? Haverá apagão?

Os especialistas evitam fazer previsões para 2022, pois a próxima estação chuvosa pode mudar todo o jogo, enchendo os reservatórios das hidrelétricas e afastando os riscos vividos neste momento. Por enquanto, ainda não é possível ter uma boa visibilidade sobre o volume de chuva para a próxima temporada. Independentemente do cenário hidrológico, as empresas já consideram que o preço da energia continuará mais elevado em 2022.

Paralelamente a isso, cresce o senso de urgência por uma reforma do modelo do setor elétrico. “É hora de discutir seriamente o projeto de lei 414 [antigo PLS 232, que trata da modernização do setor]. Como são questões muito complexas, é melhor que o Congresso dê um voto de confiança no setor, no que foi convergência durante a discussão da consulta pública 33 [que lançou as bases para o projeto]”, Avalia Jerson Kelman, ex-diretor-geral da Aneel e primeiro diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA).

Qual é o impacto da crise hídrica nas empresas do setor elétrico?

Entre as empresas de energia, as mais expostas aos efeitos diretos da crise são as hidrelétricas. A falta de chuvas resultou em um agravamento do risco hidrológico, ou “GSF”, como é conhecido no setor. GSF é a sigla que significa déficit entre a garantia física das hidrelétricas e a energia efetivamente gerada por elas. Quando o GSF aumenta, as geradoras ficam expostas ao mercado de curto prazo, tendo que comprar energia para honrar seus contratos a preços normalmente mais elevados.

Embora já acostumadas a lidar com esse tipo de risco, as empresas mais expostas aos mananciais viram seus resultados do segundo trimestre piorarem, uma vez que não era esperada uma queda tão forte de chuvas. Para mitigar o risco hidrológico, as empresas utilizam diferentes estratégias.

Um deles é a redução na contratação de ativos hídricos – o desafio, neste caso, é encontrar o “ponto ótimo”, equilibrando perdas e ganhos com a imprevisibilidade das variações dos preços da energia. Em outra frente, há diversificação de portfólio, com foco em geração renovável ou negócios em distribuição e transmissão de energia.

Como os distribuidores de energia são afetados?

Essas empresas podem sofrer com a crise porque a conta de luz está ficando mais cara devido à ativação da bandeira tarifária vermelha nível 2. Recentemente, a Aneel criou uma nova bandeira, denominada “Escassez Hídrica”, que custará R $ 14,20 adicionais a cada 100 kWh consumidos, ante R $ 9,49 na bandeira vermelha atual 2.

Com o aumento dos custos para os consumidores, uma possível consequência é o aumento da inadimplência no pagamento da conta de luz e até o aumento do furto de energia, popularmente conhecido como “gatos”.

Qual é o impacto da crise sobre os consumidores do mercado livre?

Consumidores que atuam no mercado livre de energia, como indústrias e grandes empresas, tendem a ter mais previsibilidade, pois contratam energia diretamente com o fornecedor (gerador ou comercializador), negociando preços e prazos contratuais.

Apesar disso, vários consumidores, especialmente os industriais, têm se preocupado com a disparada das tarifas de serviços do sistema (ESS). Neste ano, a conta ESS teve um aumento significativo devido à necessidade de despacho das termelétricas fora da ordem de mérito de custo. De janeiro a agosto, os valores atingiram R $ 8,3 bilhões, já o dobro do valor de todo o ano de 2020 (R $ 4 bilhões). O tema está no radar dos grandes consumidores industriais, que veem no ESS um custo adicional que não haviam previsto.

Com a crise, como andaram os preços da energia no mercado?

Os preços da energia no mercado “spot”, conhecido pela sigla “PLD”, foram pressionados. A recente virada de preço veio trazer choques para o mercado de comercialização de energia. Duas tradings, Brasil e Argon, entraram em default com as contrapartes por não terem respaldo para honrar os contratos firmados – a Argon inclusive entrou com pedido de recuperação judicial. Os casos levaram a Aneel a acelerar as discussões sobre melhorias na segurança das operações no mercado livre.

Os consumidores cativos, atendidos por distribuidoras de energia, devem ver suas contas de luz aumentarem ainda mais a partir de setembro, com a nova bandeira “Escassez hídrica”. Para tentar amenizar o orçamento, o consumidor pode optar por reduzir o consumo, participando do programa do governo que vai oferecer um bônus – a adesão é voluntária.

Para os anos seguintes, especialistas observam que os reajustes tarifários planejados acabaram sendo adiados pela Aneel. A medida amenizou o orçamento das famílias no curto prazo, mas a conta vai chegar em algum momento.

Nesse sentido, começam a surgir iniciativas para amenizar o problema a partir de 2022. O governo determinou, por exemplo, que a Eletrobras deverá fazer uma contribuição de R $ 5 bilhões em 2022 para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE).

Segundo o próprio governo, a medida faz frente a uma “possível pressão tarifária em vista das condições apresentadas pelos reservatórios das hidrelétricas perante a escassez hídrica vivenciada atualmente pelo país”.

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