Debate sobre preço da energia marca 50 anos do tratado de Itaipu
Ano de 2023 teve quitação da dívida e abre caminho para renegociação dos termos financeiros do acordo
O aniversário de 50 anos da assinatura do tratado entre Brasil e Paraguai para a construção e a operação da usina binacional de Itaipu , no Rio Paraná, nesta quarta-feira (24), marca dois momentos históricos, afirmam especialistas.
Olhando para trás, o tratado referenda o que setor de energia qualifica como triunfo da “engenharia diplomática”. Olhando para frente, marca outra negociação, a do início da revisão das bases financeiras da usina e, consequentemente, do preço da energia.
O tratado tem 25 artigos e conta com três anexos que detalham questões específicas. O anexo A traz o estatuto da entidade binacional Itaipu. O anexo B trata das instalações destinadas à produção de energia. O anexo C traz as bases financeiras e de prestação dos serviços
Foi acordado entre as partes que o anexo C pode ser revisto quando a dívida for quitada, o que ocorreu em fevereiro deste ano. Como o Brasil acaba de empossar um novo governo e o Paraguai define o novo presidente em 30 de abril , a negociação histórica tende a ficar para o segundo semestre. Porém , já é identificada como sensível
“Itaipu é uma empresa extraordinária que tem três compromissos importantes: os consumidores, a relação bilateral com o Paraguai e os interesses regionais no Paraná. Porém, é o consumidor que paga por tudo. A negociação do anexo C precisa manter o equilíbrio desses três pilares, mas sempre respeitando o consumidor”, afirma Celso Torino, que foi diretor técnico executivo de Itaipu e é vice-presidente da Cier (Comissão de Integração Energética Regional), organização que reúne representantes da área de energia nas Américas do Sul e Central, além do Caribe
Segundo o Instituto Acende Brasil, como os sócios têm porte e históricos muito diferentes, os números mostram que os termos do acordo exigiram mais do lado brasileiro. De acordo com uma lei que também faz 50 anos em 5 julho de 1973, consumidores das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste são obrigados a pagar pela energia de Itaipu.
Levantamento da entidade mostra que, de 1985 a 2021, data do último balanço da empresa, o Brasil pagou US$ 83,2 bilhões (R$ 420,9 bilhões) a Itaipu. O Paraguai, por sua vez, recebeu lucros de US$ 5,9 bilhões (R$ 29,8 bilhões).
“Poucas pessoas se dão conta disso”, diz Claudio Sales, presidente do Acende Brasil. “A combinação do que o Paraguai recebe de royalties, remuneração de capital e ressarcimentos dá um volume de dinheiro que é mais do que suficiente para ele pagar pela energia de Itaipu.”
Há outras razões para explicar a diferença. O financiamento para obra da usina foi um project finance, modalidade em que a dívida é quitada por meio do fluxo de caixa do próprio projeto —nesse caso, via tarifa de energia compulsória.
“No montante de recursos e no prazo, o project finance de Itaipu foi o maior do mundo”, diz Altino Ventura Filho, que comandou Itaipu de 1996 a 2002. Foram US$ 12 bilhões (R$ 60,7 bilhões), mas por causa dos juros acumulados durante a obra, o empréstimo totalizou US$ 19 bilhões (R$ 96,1 bilhões).
Pelo tratado, a energia é dividida meio a meio. No entanto, o Paraguai não consome toda a sua parte, e obrigatoriamente vende para o Brasil.
No último balanço da empresa, 76% da energia de Itaipu ficou com o Brasil, e o país foi responsável por 86% das receitas da usina. Considerando todas as operações financeiras naquele ano, 98% do custo total foi arcado pelo lado brasileiro, segundo o Acende Brasil.
Mais
Há mais um diferencial. Pelo acordo, Itaipu não deve gerar lucro. O preço cobrado pela energia cobre os custos para a usina cumprir com suas obrigações para operar. Sem a dívida, que representava 64% dos custos em 2021, há excedente financeiro —e seu destino alimenta debates.
Em entrevista à Folha, o novo diretor-geral de Itaipu, Enio Verri, defendeu que parte deve permanecer com Itaipu para financiar projetos socioambientais . Verri quer estender o uso dos recursos, hoje restritos ao oeste do Paraná, para todo o estado.
Já seguindo essa estratégia, a tarifa de Itaipu caiu neste ano menos do que poderia. Diferentes estudos mostraram que, com o fim da dívida, a tarifa poderia ficar entre US$ 10 e US$ 12 pelo kw (R$ 50 e R$ 60 por kilowatt). O valor fixado foi de US$ 16,71 (R$ 84,5) porque cerca de US$ 460 milhões (R$ 2,3 bilhões) foram canalizados para projetos.
O tema gerou tanto desconforto que o Senado avalia pedir explicações à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).
Algo semelhante já havia sido feito com cerca de US$ 300 milhões (R$ 1,5 bilhão durante a gestão bolsonarista.
Entidades que representam consumidores querem que o excedente seja usado para reduzir a tarifa.
“Hoje vivemos um cenário de sobras de energia no Brasil, e a de Itaipu é das mais caras”, afirma Paulo Pedrosa, presidente da Abrace (Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres). “Poderia ser reduzida em quase dois terços se abatido o pagamento do financiamento.”
Se não for possível canalizar todo o excedente para a tarifa, há quem defenda que, do lado brasileiro, os recursos passem a ser geridos pela União.
“Caso o governo, por razões superiores, decida capturar para si os recursos, eles devem ser direcionados à União”, diz José Luiz Alquéres, ex-conselheiro de Itaipu e hoje conselheiro para área de energia do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais). “Mas j amais podem ser utilizados para atender interesses regionais, como temos visto , para construir mercadinhos, prédio da aduana e coisas que competem a outras instâncias de governo.”
Outros segmentos querem que a energia de Itaipu possa ser negociada pelas regras do setor privado.
A Acende Brasil defende que a revisão do anexo C permita que cada país possa comercializar a sua parcela de energia internamente, por meio de leilões, nos diferentes mercados. Hoje, Itaipu abastece o chamado mercado cativo, onde se conectam essencialmente consumidores residenciais, principalmente os mais pobres, e pequenas empresas.
Linha semelhante é defendida pela Abraceel (Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia), que quer a energia de Itaipu no mercado livre, onde preços e prazos de fornecimento são negociados livremente entre as partes.
“É muito importante que essa energia barata e renovável chegue à indústria, que gera emprego e renda, e majoritariamente no mercado livre “, afirma Rodrigo Ferreira, presidente-executivo da Abraceel.
Passados 50 anos, é inegável, dizem historiadores, que o tratado tenha sido fundamental para o projeto que abriu caminho para a constituição da empresa Itaipu, em 17 de maio de 1974, e para construção da hidrelétrica, que começou em 1975. Mas o fim das Sete Quedas, o forte impacto ambiental, o alto custo e o porte avantajado da obra só vingaram, segundo estudiosos, porque foram encampados por presidentes de regimes de ditadura. Assinam o tratado os generais e presidentes Emílio Garrastazu Médici, do Brasil, e Alfredo Stroessner, do Paraguai.
Não por coincidência, as usinas que rivalizam com Itaipu estão na China.
O historiador Paulo Brandi, pesquisador do Centro de Memória da Eletricidade, lembra que foram necessários 20 anos de discussões técnicas sobre o aproveitamento do rio, e que os dois países só alcançaram um meio-termo em 1966, com a “Ata de Foz do Iguaçu” ou “Ata das Cataratas”, que definiu as características binacionais da área.
“O tratado de Itaipu foi o início de uma nova etapa nas relações internacionais da região’, diz Micael da Silva, professor de História das Relações Internacionais na Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana). “Estabeleceu uma nova política de Estado nestes 50 anos.”