Desafio maior para gestão

Data da matéria: 24/04/2022

28/abr/2022, Revista Valor Setorial Energia

A crise hídrica do ano passado, que fez a palavra racionamento voltar a ser sussurrada pela terceira vez em 20 anos, expôs a importância das usinas hidrelétricas, que são e serão o coração do sistema elétrico nacional. Em 2001, esses empreendimentos respondiam por cerca de85%da geração de eletricidade no país. Hoje, sua participação caiu para dois terços e até 2031 será ainda mais diminuída: 46%. A perda relativa de presença coincide comum ou pro ingrediente: desde os anos2000, todos os grandes projetos hídricos foram construídos sem reservatórios. o que reduz a flexibilidade no planejamento e torna a operação mais complexa. É o caso de Belo Monte, a última hidrelétrica de grande porte construída no país, que em setembro de 2021 chegou a produzira penas 3%de sua capacidade em um dia.

A diversificação da matriz, com o avanço de fontes como eólicas e sola res, que não podem se respaldadas a qualquer momento em razão de dependerem de vento e sol, implica a necessidade de ler fontes que possam armazenar energia e garantir potência nos horários de pico. Em boa parte das tardes de dia de semana de abril, um volume importante da energia foi gerado por hidrelétricas.

“Sem elas, nós não temos nada, são o coração do sistema, já que o modelo foi desenvolvido quando o sistema era hidrotérmico. Com o avanço das fontes não despacháveis, torna-se ainda mais importante a hidrelétrica, que pode acumular água e atender em horário de ponta. É importante reconhecer os atributos que ela traz para a segurança do sistema. A valorização deles é a mais razoável”, diz o presidente da Engie Brasil, Mauricio Bähr.

No Plano Decenal 2031, lançado na primeira semana de abril, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) incorporou de maneira inédita a representação das restrições operativas das usinas hidrelétricas, ou seja, identificou eventuais problemas que podem dificultar a geração ou o armazenamento de água nos reservatórios. “Se eu tenho mais dificuldade para fechar a torneira do sistema, então é preciso, talvez, guardar mais água no reservatório porque, se vier hidrologia muito mim, eu tenho um estoque pior. Tem duas estratégias: ou eu guardo mais água preventivamente ou eu trabalho para aprimorar a gestão e governança do uso múltiplo de águas”, observa o presidente da EPE, Thiago Barral “Se eu fizer investimento para potência e flexibilidade e descubro que por uma cidade a jusante ou por erosão ou navegação, eu não vou conseguir fazê-lo, há uma frustração de receita. Então há o desafio regulatório de remunerar isso e do planejamento, do benefício energético, mas o fato é que ele precisa ser feito, comum sinal econômico que possa maximizar o benefício.”

Tem havido mais restrições ã operação, seja de irrigação, seja de turismo, por exemplo, de cidades ao redor do lago de Furnas. A gestão múltipla das águas é um ponto de alerta, principalmente no Sudeste, aponta a EPE, que destaca que a modernização de hidrelétricas existentes na região já enfrenta desafios de operação em cenários de falta de chuvas. O uso múltiplo das águas cria desafios para a operação e o planejamento, enquanto as hidrelétricas deverão ter papel relevante para modulara carga e oferecer energia nos horários de ponta. Segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA), a demanda por água no Brasil é crescente, com aumento estimado de aproximadamente 80% no total retirado nas últimas duas décadas. A previsão é de que ocorra um aumento de 24% na demanda até 2030. Apenas uma nova hidrelétrica consta do Plano Decenal 2031 da EPE: a UHE Bem Querer, em Roraima, com cerca de 650 JW.

Sob esse contexto surgem as discussões de um sistema de precificação da água armazenada nos reservatórios das hidrelétricas, que funcionam como gigantes baterias de água, mas essa função não está colocada no modelo. “Esse serviço ancilar se torna importante porque estamos migrando para uma matriz complexa, com fluxos de energia multidirecionais e fontes intermitentes que trazem maior incerteza de geração e preço”, analisa Alexandre Uhlig, diretor de Assuntos Socioambientais e Sustentabilidade do Instituto Acende Brasil. Em dez anos, a energia solar deve crescer 350% e a eólica deverá dobrar.

O país conta com cerca de 750 hidrelétricas de portes diversos, com capacidade somada de 120 GW. Cerca de 50 GW seriam passíveis ele repotenciação, sendo que 31% dos empreendimentos têm mais de 40 anos. Sócio da consultoria PSR. Rafael Kelman explica que até o fim dos anos 1990 as hidrelétricas respondiam pela maior parte da eletricidade gerada no país e seus reservatórios permitiam planejamentos plurianuais com a água armazenada. A partir do fim dos anos 2000, com o avanço de fontes intermitentes e um sistema de transmissão robusto, as hidrelétricas passam por ampliação de papel, como o de armazenamento em um sistema em que a operação é mais complexa e as fontes não despacháveis ganham presença. Ele chama de hidrelétricas 2.0. O próximo degrau seria a maior digitalização e a precificação dos serviços ancilares diante de um cenário que combina mudanças climáticas e uso múltiplo dos recursos hídricos. “Poderia ter acréscimo de 7 GW em 12usinas e essa é uma energia muito mais barata que outras fontes na base.”

Kelman aponta que a visão contemporânea das hidrelétricas impõe reflexões sobre serviços novos que podem ser criados e precificados, como, por exemplo, a possibilidade de as turbinas funcionarem em modo turbo em momentos de estresse do sistema. “Poderia também se usar a borda livre em reservatórios. Por que não trabalhar com um nível mais alto de água nos reservatórios, por exemplo, meio metro? Temos previsão meteorológica melhor e isso poderia render um ganho energético considerável”, provoca o especialista. As hidrelétricas operam com base em níveis bem abaixo da borda, para que se evite a formação de ondas que possam superar as barragens e criar problemas nas comunidades vizinhas. Uma ideia seria trabalhar com limites um pouco acima do mínimo em condições de segurança.

 

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