Distribuição vive desafio de ser sustentável

Data da publicação: 14/02/2023

Considerada como o “caixa” do setor elétrico, a distribuição de energia vai enfrentar desafios importantes nos próximos anos, com a perspectiva de abertura do mercado livre para a baixa tensão – que inclui consumidores residenciais – e de expansão da micro e minigeração distribuída, quase na totalidade por meio de painéis solares. A repercussão da contratação, pela Light, da empresa de consultoria Laplace para “melhorar sua estrutura de capital”, colocou um componente a mais nas discussões sobre um novo desenho regulatório que garanta a sustentabilidade para o segmento, que atende cerca de 80 milhões de unidades consumidoras no país, divididas em 51 áreas de concessão.

A contratação da Laplace, por sinal, despertou rumores de que a Light pretendesse pedir recuperação judicial, o que foi negado pela companhia, até pelo fato de que a iniciativa é vedada por lei. Em carta enviada à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a empresa afirmou que seu caixa não é capaz de garantir a sustentabilidade da concessão. O Valor
apurou que a Light deseja antecipar as negociações em Brasília para que se tenha uma distribuidora viável. Para isso, segundo fontes próximas à alta administração, a empresa quer mostrar que o modelo de repassar o roubo de 52% da energia desviada para as contas de luz dos demais consumidores não é mais sustentável, cujo financiamento não é mais aceito pelos credores.

A Light quer mostrar à Aneel e ao governo que é impossível disfarçar que o Rio de Janeiro está tomado pelo crime organizado e que uma saída pode ser o uso da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) para bancar as perdas.

Por sinal, nos bastidores do setor circulou a informação de que estaria em gestão no governo a edição de uma medida provisória que alteraria a Lei 12.767/2012, que veda a recuperação judicial para distribuidoras de energia, o que beneficiaria a Light e a Amazonas Energia, apontada como outra empresa que enfrenta dificuldades financeiras e operacionais, ainda não sanadas mesmo após a privatização, em dezembro de 2018. A edição da MP não foi confirmada por nenhuma autoridade até o fechamento desta edição.

Já o Ministério de Minas e Energia (MME) negou, na noite de quinta-feira (9) em nota, que “não há dentro da pasta discussão acerca do processo de renovação das concessões das distribuidoras”. Procurada, a Light afirmou que não se pronuncia. A Amazonas Energia não respondeu a pedidos de comentários da reportagem até o fechamento desta edição.

O presidente do Instituto Acende Brasil, Claudio Sales, avalia que o furto de energia requer a adoção de políticas públicas em esferas regionais e nacional. Marcos Madureira, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), salientou que o aumento da clandestinidade significa a ausência do Estado na atuação para combater a prática. Ele destaca que embora a situação seja mais séria no Rio de Janeiro, o furto de energia atinge todas as concessões. O coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Gesel-UFRJ), Nivalde de Castro, salienta que, embora metade das perdas comerciais tenha origem em áreas com restrições operacionais, cujo custo é incorporado nas tarifas dos consumidores, a outra metade é oriunda de áreas “normais”, sem domínio de quadrilhas. “No Rio, isso [o desvio de eletricidade] é uma cultura, o que dificulta o combate [às perdas]”, disse Castro.

Além das questões operacionais, o avanço da geração distribuída (GD) e do mercado livre pode criar distorções consideradas preocupantes para o mercado, sem os aperfeiçoamentos regulatórios esperados. Só no caso da GD, entre outubro do ano passado e janeiro deste ano, quando se encerrava o prazo para contratação da modalidade com 100% dos subsídios, cerca de 486 mil projetos pediram conexões às redes de distribuição, totalizando 32 gigawatts (GW) de potência.

Na avaliação da diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV Ceri), Joísa Dutra, a saída para as distribuidoras encontrarem a sustentabilidade está na chamada separação dos negócios de fio e de energia, prevista no projeto de lei 414/2021, que visa aperfeiçoar o marco legal do setor elétrico. A adoção da iniciativa, segundo ela, deveria ser urgente. “O cenário é difícil para a Light, mas também para todas as distribuidoras, por conta do avanço do mercado livre e da geração distribuída”, disse Dutra.

Sales, do Acende Brasil, afirma que o país assiste a uma expansão descontrolada da GD, com efeitos sobre os demais consumidores do país, criando um cenário insustentável. “Geração distribuída, sim. Geração descontrolada, não”, sintetizou. No caso da abertura do mercado, ele entende que ela é bem-vinda, diante da modernização do setor elétrico, com a mudança de postura do consumidor, que deixa um perfil mais passivo para se tornar um “prosumidor”, com a chegada de novas tecnologias. Para isso, ele também ressaltou que a regulação precisaria tratar da separação entre fio e energia. “Para que essa abertura seja sustentável e bem sucedida, é necessário que a regulação solucione uma série de pré-requisitos, como a segurança de mercado, a separação do fio e da comercialização e o tratamento a contratos legados [contratos em vigor, negociados em leilões de energia, com base na previsão de mercado da distribuidora na época da negociação].”

Madureira, da Abradee, explica que a abertura do mercado livre requer atenção porque a migração de consumidores deixa os que ficam na distribuidora com os custos da energia contratada no passado, o que inclui a geração térmica, as usinas nucleares e a hidrelétrica de Itaipu. Da mesma forma, quem passa a utilizar a GD, também onera os demais consumidores que não utilizam a modalidade. Com uma base menor de clientes, as tarifas aumentam – o que pode trazer mais inadimplência e mais furto de energia, alimentando um círculo vicioso, afirmou Madureira. Para ele, é fundamental a votação do PL 414, mas a solução de impasses regulatórios não se restringe à aprovação do projeto de lei.

A renovação de concessões de cerca de 20 distribuidoras entre 2025 e 2031 abre uma janela para eventuais companhias reavaliarem a viabilidade do negócio. Como é o caso da Enel, que vendeu a distribuidora de Goiás para a Equatorial Energia no ano passado, e agora tenta vender a concessão no Ceará. Procurada, a empresa não comenta o caso.

O Gesel-UFRJ está estudando uma proposta de eliminar a necessidade de renovação de contratos de concessão, pois as revisões tarifárias periódicas, feitas a cada quatro ou cinco anos, permitem que se possa revisitar constantemente os ativos e conferir a situação econômico-financeira das distribuidoras. A proposta foi levantada recentemente pelo ex-diretor-geral da Aneel Jerson Kelman, destacou o coordenador do Gesel-UFRJ. A empresa só perderia o contrato de concessão, com posterior relicitação pelo poder concedente, caso descumprisse parâmetros de qualidade operacional e de equilíbrio financeiro. “Como é um investimento contínuo na melhoria ou ampliação da rede de distribuição e isso é capturado na tarifa nas revisões, a solução para evitar o problema é um contrato de concessão contínuo”, disse Castro.

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