Blecaute no Amapá traz reflexões sobre o planejamento da transmissão em estados atendidos nas extremidades dosistema

Data da publicação: 01/02/2021

01/Fev/2021, Revista Brasil Energia – O apagão de diferentes níveis que atingiu o Amapá ao longo de quase todo o mês de novembro do ano passado é um sinal de alerta para aperfeiçoamentos no setor elétrico, principalmente em relação a dois pontos: o planejamento e o monitoramento da transmissão em estados na ponta da linha do sistema, em que a fragilidade pode ser maior, e a governança do setor, seja entre as autoridades de regulação, seja entre iniciativa privada e governo. “A crise no Amapá enseja uma pergunta: os estados que estão na ponta do sistema precisam de um planejamento diferenciado?

Hoje a expansão do sistema é igual para todos os estados. Isso faz sentido?”, pondera Luiz Barroso, presidente da PSR e ex-presidente da Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE). As três maiores usinas hidrelétricas instaladas no Amapá – Cachoeira Caldeirão (219 MW de capacidade), Santo Antônio do Jari (392,95 MW) e Ferreira Gomes (252 MW) – estão eletricamente conectadas ao sistema de 230 kV do estado, ou seja, para a geração delas chegar à rede de distribuição não há alternativa senão passar pelos transformadores de 230/69 kw de uma Subestação (SE), nesse caso a SE Macapá.

Esta alternativa única para a chegada da energia ao estado é considerada como a maior fragilidade do abastecimento do Amapá. Mesmo que a carga não justificasse investimento em um segundo sistema de transmissão independente, o fato de o Amapá estar na ponta da linha e na floresta amazônica poderiam ser levados em conta. A linha de transmissão que escoa energia no Amapá foi licitada em um leilão de 2008, com início de operação em 2015, após atraso no processo de licenciamento ambiental. Naquele momento, o planejamento foi executado sem ter se analisado uma segunda linha de escoamento, nem reforços. “Optou-se pela solução mais barata, mas não necessariamente a mais segura”, diz um técnico. O governo federal anunciou que estuda mudanças no planejamento energético de estados que estão na chamada ponta do sistema elétrico para evitar novas situações como a que ocorre no Amapá.

O incidente no Amapá teve custos para todos os brasileiros. No fim de novembro, foi publicada a MP 1.01 O, que autorizou a União a repassar R$ 80 milhões à concessionária CEA, via Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), para cobrir a isenção da tarifa dos amapaenses. Uma portaria do Ministério de Minas e Energia (MME) autorizou a compra pela Eletronorte de 150 MW de energia elétrica do sistema integrado nacional, com custo repassado a todos os brasileiros por meio da conta de luz. 11 Esse caso ajuda a mostrar que a análise sobre a implantação de linhas em estados na ponta do sistema deve ser discutida sob um olhar mais amplo”, afirma Barroso. Para o ex-presidente da EPE entre 2004 e 2016 e um dos formuladores do modelo do setor elétrico adotado a partir de 2004, Mauricio Tolmasquim, a questão da confiabilidade expõe uma equação em que há de um lado os riscos e de outro os custos.

“Quanto mais redundância, mais seguro, mais caro. O ponto ótimo a ser atingido varia de cabeça a cabeça. O sistema ali foi planejado para ficar de pé com contingência. Se fosse um sistema N-2 para 2 falhas, a segurança seria maior, o custo também, mas a probabilidade de uma falha dupla é muito baixa. As vezes, a análise tem de levar em conta o tamanho do transtorno caso haja um problema.” Além do planejamento, há um outro ponto que suscita questionamentos. Para Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel e também da Abrace, em sistemas em que não há linhas alternativas de escoamento é preciso ter um acompanhamento diferenciado. “Se a subestação era o único caminho crítico para suprimento do Amapá, por que não um monitoramento permanente?” Aí vem uma segunda pergunta: quem deveria fazer esse monitoramento? Para Edvaldo, a resposta seria simples, mas se tornou complexa.

Quando o novo modelo do setor elétrico foi criado, em 2004, instituiu-se o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), uma inovação baseada na experiência da Câmara de Gestão da Crise de Energia, estabelecida em 2001 para gerenciar o racionamento de energia elétrica que perdurou entre junho de 2001 a fevereiro de 2002 no Brasil. O assunto não chegou às reuniões mensais do órgão. Mesmo se tivesse chegado, poderia haver ruídos. Há alguns meses, o TCU indagou o MME sobre quem responderia pela restrição de oferta que vem desde 2014. “A resposta é de que é repartida entre o Ministério, a Aneel, o ONS”, aponta. Para ele, a situação se complica porque há mais de 300 concessionários de transmissão, sendo que algumas sociedades de propósito específico têm mais de dois acionistas. 11 Como coordenar isso?”, questiona.

Para Tolmasquim, esse ponto também deve ser analisado com cuidado. “Restringir a competição e reduzir o número de participantes em uma Sociedade de Propósito Específico pode comprometer a competição no leilão e colocar em perigo a modicidade tarifária. Mas é preciso estudar como coordenar melhor a malha e a governança desses projetos. Isso mereceria um grupo de estudo para analisar o tema”, aponta Tolmasquim. O presidente da Associação Brasileira das Concessionárias de Energia (ABCE), Alexei Vivan, destaca que o incidente no Amapá leva a um sinal de alerta em relação a como estão os sistemas que funcionam como backup, seja em estados que estão na ponta do sistema, seja em conexões entre estados. “É preciso priorizar esse tema e isso pode exigir reforços em alimentadores, transformadores ou alternativas de escoamento”, destaca Vivan.

Envelhecimento do sistema

Além da reflexão sobre a expansão da transmissão nos estados na ponta da linha, o setor de transmissão tem outro desafio à frente: o envelhecimento do sistema que pode aumentar sua fragilidade, um ponto que tem está inclusive citado no Plano Decenal 2030, em consulta pública desde dezembro. “Falta um modelo regulatório para isso, esse tema é mal definido”, afirma Luiz Barroso. Parte dos sistemas de transmissão das regiões Sul e Sudeste, os primeiros do país, foi erguida na década de 1960. Levantamento do ONS, concluído em 2018, apontou que existem 96.740 equipamentos com vida útil regulatória até 2022. Isso não implica que eles precisarão ser imediatamente substituídos até o próximo ano, mas que os equipamentos estarão completamente depreciados a partir da data. Estariam em substituição cerca de 15% do total, pouco mais de 16 mil equipamentos. Os ativos mais antigos estão concentrados nas nove empresas que renovaram os contratos de concessão em 2013: Eletronorte, Eletrosul, Furnas, Chesf, CTEEP, Cemig GT, CEEE GT, Copel GT e Celg GT.

A renovação foi realizada dentro do processo de discussão da MP 579, convertida na lei 12.783, que estipulou indenização às transmissoras referente aos ativos existentes e não amortizados após maio de 2000. O segmento recebeu um baque com a renovação, pela qual as empresas só receberiam a operação e manutenção dos ativos amortizados, reduzindo sua receita. Calculados na época em R$ 62,2 bilhões, os valores das indenizações foram questionados judicialmente por grandes consumidores de energia elétrica individualmente ou por meio de associações de grandes consumidores. Uma parte do que seria pago pelo consumidor foi suspensa. A decisão, depois, foi posteriormente revertida na justiça em janeiro de 2020. A indefinição fez muitas empresas pisarem no freio e engavetarem projetos de modernização.

Da edição da MP, em setembro de 2012, até uma portaria do MME regulamentando o tema, o setor ficou paralisado por cinco anos. “Foram cinco anos de indefinições em um momento crítico de necessidade de renovação. Considerando-se ainda a perda da capacidade financeira das transmissoras renovadas, obtém-se um cenário de desaceleração do planejamento de investimento, situação que em geral não pode ser revertida de forma instantânea uma vez que um reforço na rede leva mais de dois anos para ser autorizado, por exemplo”, destacou estudo do Instituto Acende Brasil sobre o tema.

Em junho do ano passado, a Aneel revisou as Receitas Anuais Permitidas (RAPs) de nove transmissoras que tiveram seus contratos prorrogados pela lei 12.783. O sinal foi interpretado como o fim definitivo das indefinições trazidas com a nova regulação vinda da MP 579 de setembro de 2012. As nove transmissoras tiveram seu RAP médio elevado em 13,82°/o, passando de R$13J bilhões para R$ 15,6 bilhões. “Isso permitiu que a sustentabilidade do setor fosse preservada. As indefinições regulatórias desde a edição da MP 579 tiveram impacto. Esse foi um sinal bastante positivo”, afirma o presidente da Abrate, Mário Miranda. Ele afirma que serão necessários investimentos de R$ 32 bilhões para a completa substituição dos ativos cuja idade útil regulatória expira em 2024. “Os fabricantes de equipamentos estão trabalhando em dois turnos, as transmissoras estão executando seus planos de modernização”, afirma.

Equipamentos geram desafios

Apesar da idade avançada dos ativos do sistema de transmissão, a performance destes equipamentos tem sido satisfatória e com baixa taxa de falhas nos últimos anos, segundo os dados do ONS e da Aneel. Para isso, Miranda aponta que é preciso analisar a questão sob um ponto de vista mais amplo em que a vida física dos equipamentos supera a regulatória. Nesse caso, não haveria incentivo para permanecer com os equipamentos que ainda estejam apresentando bom desempenho. Uma ideia seria conceder uma premiação adicional aos transmissores pelo desempenho satisfatório de equipamentos já depreciados regulatoriamente.

Essa seria uma forma inclusive de reduzir eventuais impactos tarifários. Outra sugestão que circula entre empresários é o reconhecimento de uma parcela adicional sobre os custos de Operação e Manutenção, para cobrir custos adicionais de manutenção destes equipamentos O desafio será executar a troca dos equipamentos, manter a qualidade dos serviços, evitar pressão sobre as tarifas e criar condições para que a indústria de máquinas e equipamentos possa atender à demanda de forma sustentável, sem gargalos, que também poderia provocar aumento de custos dos equipamentos.

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