Garantia de oferta ganha relevância
27/out/2022, Revista Valor Setorial Infraestrutura e Logística
A matriz elétrica brasileira se transformou nas últimas duas décadas. Em junho de 2001, quando o país ingressou no maior racionamento de sua história com a intenção de reduzir 20% do consumo para poupar água dos reservatórios, as hidrelétricas respondiam por 90% da geração de eletricidade no país, com complemento de usinas térmicas. O sistema era hidrotérmico. Nos últimos anos, uma revolução tecnológica reduziu os gastos com a implantação de usinas solares e eólicas no mundo. O custo de investimento( capex) nos projetos solares caiu 80%, entre 2010 e 2020, enquanto o de eólica, 30%.
A geração distribuída solar, instalada por mais de um milhão de brasileiros em residências e pequenas indústrias, responde por 10% do consumo entre as 1 O da manhã e o meio-dia e soma 14 GW, superior à capacidade da hidrelétrica de Itaipu, a segunda maior do planeta. As eólicas são a segunda principal fonte de eletricidade do país, com pouco mais de 10%. Hoje, o Brasil tem uma matriz diversificada e as hidrelétricas respondem por cerca de 60%.
A fonte hidrelétrica deverá sofrer uma redução de cerca de 10 pontos percentuais até o fim ela década, que será complementada por outras fontes renováveis”, diz Erik Rego, diretor de energia elétrica ela Empresa de Pesquisa Energética (EPE). A perda relativa dessas usinas, no entanto, não significa menor importância. O avanço das fontes variáveis, como eólicas e solares, traz um desafio para o operador do sistema. No jargão do setor, elas não são despacháveis, ou seja, não podem ser despachadas automaticamente em qualquer momento, por dependerem de fatores climáticos como o vento e o sol. Com isso, há um debate sobre a expansão das renováveis e que fontes permitirão despacho imediato. As usinas termelétricas a gás natural se inserem nesse ponto.
A perda relativa de presença das hidrelétricas coincide comum outro ingrediente: desde os anos 2000, os grandes projetos hídricos foram construídos sem reservatórios, o que reduz a flexibilidade no planejamento e torna a operação mais complexa. A diversificação ela matriz, com o avanço elas não despacháveis, como eólicas e solares, implica a necessidade de ter fontes que possam armazenar energia e garantir potência nos horários de pico. Em boa parte das tardes de semana de abril, por exemplo, a energia era gerada por hidrelétricas que são despacháveis. Com este contexto surgem discussões de um sistema de precificação da água armazenada nos reservatórios das hidrelétricas. As hidrelétricas funcionam como gigantes baterias ele água, mas essa função não está colocada no modelo.
“Esse serviço ancilar se torna importante, porque estamos migrando para uma matriz complexa, com fluxos de energia multidirecionais e fontes intermitentes que trazem maior incerteza ele geração e preço”, analisa Alexandre Uhlig, diretor de assuntos socioambientais e sustentabilidade do Instituto Acende Brasil. Em dez anos, a energia solar deve crescer 350%e a eólica deverá dobrar.
Estudo em andamento da PSR, a mais reputada consultoria do setor elétrico, feito para o Banco Mundial, mostra que o Brasil poderia expandir sua base de forma mais competitiva só com o avanço elas renováveis, reduzindo mais a pegada de carbono do setor elétrico e trazendo maior competitividade no preço, caso fosse essa a decisão tomada. Mas o avanço de fontes variáveis exigirá avanços regulatórios. Um deles é que as hidrelétricas fossem remuneradas por um outro serviço, além de gerar energia. Seus reservatórios são essenciais para planejar o sistema e oferecer previsibilidade. “Essa maior presença exigirá que as hidrelétricas sejam remuneradas por um serviço que elas prestam, como baterias de armazenamento”, diz o presidente da PSR, Luiz Barroso.
As mudanças climáticas também trazem desafios. A incerteza cada vez maior na operação do sistema exige ferramentas extras, diz o diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Luiz Carlos Ciocchi. O avanço de fontes variáveis na matriz, como eólicas e solares, exigirá reforços em linhas de transmissão retomará a tarefa de operar o sistema mais complexa. O ONS lançou recentemente sua estratégia de sustentabilidade, composta por três dimensões, cada uma com dois temas centrais. Uma delas é o ONS+Verde: Transição Energética e Gestão Ecoeficiente de Recursos. O órgão está se preparando para o cenário de fontes mais variáveis e incertezas climáticas. “Para o planejamento, do futuro, nossa reivindicação é flexibilidade, a palavra mais importante porca usa dessa variabilidade crescente no sistema. Ou seja, operar o sistema com usinas com capacidade ele acomodar essas variações. Quando entrarem de falo no sistema tecnologias para armazenar eletricidade e despachar quando quisermos, poderemos contar com isso para assegurar mais segurança no abastecimento. Cada solução tem suas características.”
Segundo Barroso, por décadas as hidrelétricas eram valorizadas pela energia que produziam. “Quando se tem o rese1vatório plurianual e as hidrelétricas respondem por 90% da eletricidade, atributos de outros são mascarados. Hidrelétrica dá potência, energia, flexibilidade. Na hora em que se veem outras fontes, com inflexibilidades ou variações, há dependência cada vez maior das hidrelétricas para controle de frequência, tensão, potência. Esse papel está mudando, não é só uma questão técnica, mas também regulatória e contratual, que tem de ser revista. Hoje, elas são remuneradas por energia. Qual at1ibuto que ela traz? Quanto vale? Qual o contrato que terá para oferecer esse atributo? Isso está na parte teórica. Teremos de avançar. Sobre a precificação da água há um debate recente: se é preço por modelo ou mercado que está sem definição. Trabalhamos com modelos, buscando aprimorar sempre. Mas essas discussões não podem ser adiadas por muito tempo.”
As hidrelétricas têm enfrentado um cenário mais complexo em suas operações. Tem havido mais restrições, seja de irrigação, seja de turismo, por exemplo, de cidades ao redor do lago de Furnas. A gestão múltipla das águas é um ponto de alerta, principalmente no Sudeste, aponta a EPE, órgão estatal de planejamento, que destaca que a modernização de hidrelétricas existentes na região enfrenta desafios ele operação em cenários de falta de chuvas. O uso múltiplo das águas cria problemas para a operação e o planejamento para modulara carga e oferecer energia nos horários de ponta. Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), a demanda por água no Brasil é crescente, com aumento estimado de cerca ele 80% no total retirado nas últimas duas décadas. A previsão é ele que ocorra um aumento ele 24% da demanda até 2030.
A construção ele novas hidrelétricas tem sido um ponto de interrogação entre investidores e empreendedores, em razão ele desafios socioambientais. Mais ele 70% elo potencial hidrelétrico do país está na região Norte. A Auren (ex-Cesp), que tem buscado diversificar sua matriz além das hidrelétricas com investimentos em eólicas e solares, participou no segundo semestre do leilão de ativos da CEEE-G, privatizada pelo governo gaúcho. “Quando participamos do leilão ela CEEE-G, alguns questionaram por que estávamos interessados em hidrelétrica, porque estamos diversificando nossa matriz com eólicas e solares. Mas eólica e solar são empreendimentos gerenciáveis e mais fáceis de serem viabilizados, enquanto é muito difícil ver uma hidrelétrica greenfield saindo elo papel. Ter hidrelétrica permite também crescer em eólica e solar, porque ela oferece controle de tensão e frequência. Novas hidrelétricas podem ser construídas no país, mas a equação risco e retorno é difícil de avaliar. Hoje, é complicado encaixar o risco de construção e socioambiental para a nossa estratégia de crescimento. Observamos que as últimas hidrelétricas construídas não foram tão bem-sucedidas quanto esperado”, diz o presidente da Auren, Fabio Zanfelice.
O país conta com cerca de 750 hidrelétricas de portes diversos com cerca ele capacidade somada de 120 GW. Cerca de 50GW seriam passíveis de repotenciação, sendo que 31% dos empreendimentos têm mais de 40 anos. Sócio da consultoria PSR, Rafael Kelman afirma que até o fim dosa nos 1990 as hidrelétricas respondiam pela maior parte da eletricidade gerada no país e seus reservatórios permitiam planejamentos plurianuais com a água armazenada. A partir do fim dos anos 2000, com o avanço de fontes intermitentes e um sistema de transmissão robusto, as hidrelétricas passaram por ampliação de papel, como o de armazenamento em um sistema em que a operação é mais complexa e as fontes não despacháveis ganham presença. Ele chama de hidrelétricas 2.0. Os próximos degraus seriam a maior digitalização e a precificação dos serviços suplementares diante de um cenário que combina mudanças climáticas e uso múltiplo dos recursos hídricos. “Poderia ter acréscimo de 7 GW em 12 usinas, e essa é uma energia mais barata que outras fontes na base”, destaca.