Governo faz mistério sobre reforma e amplia risco de investimento no setor elétrico
O governo promete desde o ano passado uma reestruturação no setor elétrico. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, defendeu em várias ocasiões a necessidade de organizar a “colcha de retalhos” do setor e “equalizar a questão tarifária” para proteger os “consumidores mais frágeis”. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) cobrou tarifas mais baixas para “o povo pobre e trabalhador” e insinou mudanças no mercado livre de energia, que é acessível a empresas de médio e grande porte e tem preços mais vantajosos.
Após muitas declarações e ameaças veladas, porém, o país continua sem conhecer o projeto do governo. Muito embora Silveira tenha declarado cinco meses atrás que o projeto estava pronto, nada foi apresentado até agora.
Contatado pela Gazeta do Povo, o Ministério de Minas e Energia (MME) informou que “a proposta está sendo analisada internamente” e não se comprometeu com prazos. “A expectativa é que sejam apresentadas, nos próximos meses, medidas estruturantes que incentivem energias renováveis, com equilíbrio nos custos para os consumidores”, informou a pasta.
A questão é que o mistério alimentado pelo governo cria um clima de insegurança que pode afetar investimentos em um setor que é dos mais complexos. Nele convivem geradoras, transmissoras, distribuidoras e comercializadoras de energia; consumidores divididos em dois mercados (um livre e outro regulado) e parte deles conseguindo também gerar energia; e uma divisão de custos que hoje sobrecarrega a conta de luz dos “regulados”, que bancam de subsídios a energias renováveis até a geração a partir de fontes fósseis em regiões isoladas.
Pesa sobre essa incerteza o apego das gestões petistas ao intervencionismo, como ilustra a Medida Provisória 579, editada por Dilma Rousseff em 2012, que buscava baixar a tarifa “na marra” e por suas consequências ganhou o apelido de “o 11 de setembro do setor elétrico”.
Agentes do setor e especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo ressaltam o “efeito dominó” provocado pela insegurança em torno da reforma, que não afeta só os planos de investimento, mas a própria capacidade das empresas de mobilizar aportes, com aumento na percepção de risco e do custo do capital.
Enquanto o governo não revela seus planos, uma empresa que planeja migrar para o mercado livre não tem como saber se os preços da energia no médio prazo serão os que ela contratou ou se pode haver alguma surpresa. Um consumidor que pense em instalar um painel fotovoltaico no telhado de casa não tem como saber se continuará contando com os incentivos hoje concedidos a esse tipo de geração de energia. E os empreendedores que forem disputar um leilão de concessão vão embutir o risco da insegurança jurídica nas tarifas, o que vai encarecer a conta de luz – resultado oposto ao buscado pelo governo com a reforma do setor.
“A indefinição atrapalha e muito”, diz Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil. “Esse setor, com toda essa complexidade, precisa de regras, pois requer investimentos de capital intenso e com grandes prazos de maturação. É fundamental que se tenha uma regulação eficiente, e que tal seja absolutamente transparente e previsível na sua evolução”, complementa.
Câmara tem seu próprio projeto de reforma do setor elétrico – e com regime de urgência
O nó da reforma do setor elétrico se agravou quando, na semana retrasada, a Câmara dos Deputados aprovou regime de urgência para o Projeto de Lei 4831, do deputado João Carlos Bacelar (PL-BA). O teor principal da proposta é a renovação de 15 anos das concessões de distribuidoras de energia elétrica.
Mas a proposta não se limita a renovar concessões e cria uma série de vantagens para as empresas distribuidoras – aquelas que detêm a concessão da distribuição de energia no mercado regulado na região onde atuam, e de quem os consumidores “não livres” são obrigados a comprar energia.
Uma dessas vantagens é a fixação de um teto de 10% para a inserção de geração distribuída na área de atuação de cada concessionária. Essa é a energia produzida pelos próprios consumidores – via painéis fotovoltaicos em telhados de residências, por exemplo. O projeto prevê que, uma vez atingido o limite de 10%, a distribuidora não tem mais a obrigação de fornecer ponto de conexão de energia para novos acessantes.
O projeto também assegura uma reserva de mercado para as distribuidoras, que ficam protegidas do avanço do mercado livre – aquele em que médios e grandes consumidores escolhem de quem vão comprar a energia. Pela proposta, elas terão no mínimo 70% do mercado em suas áreas de concessão. Com isso, ficam vedados novos contratos no mercado livre quando este atingir 30% do consumo de energia daquela região.
O projeto também prevê que todos os consumidores – e não apenas os do mercado regulado, como é hoje – dividam os custos da compra de energia de usinas como a hidrelétrica de Itaipu as nucleareas Angra 1 e 2. Esse ponto atende a uma questão apontada por especialistas do setor: hoje os clientes “cativos”, entre eles todas as residências, suportam esses custos, enquanto os demais não arcam com essas despesas.
Outro ponto do projeto, este também favorável ao consumidor cativo, é que o risco hidrológico – custos extras causados pela falta de chuvas e o consequente acionamento de outras usinas para cobrir o que não é gerado pelas hidrelétricas – fique concentrado nas geradoras e distribuidoras. Não haveria, assim, repasse aos consumidores, como ocorre hoje.
Joisa Dutra, diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV (Ceri/FGV), destaca que tais temas precisam ser discutidos. Ele cita o exemplo do repasse do custo hidrológico para mostrar a complexidade da questão.
“Reforma tem que ser objeto de legislação, e o lugar de discussão é no Congresso. Mas estamos vendo que a sociedade foi surpreendida pelo teor desse PL que foi aprovado. Ter limite é uma boa prática de qualquer medida de incentivo. Mas o problema é que isso não foi discutido e isso tem implicações. Pode ser bom para uns e não para outros”, diz.
“O repasse do custo hidrológico sem uma revisão dessa arquitetura é impossível, pois quando isso foi mudado lá atrás, o custo do risco foi passado para os consumidores do ambiente regulado em troca dos contratos de concessão de geração. Eles mudaram de regime para um caso em que o gerador negociava a sua energia livremente para outro em que ele era compensado do ponto de vista de operação e manutenção apenas”, explica.
Joisa pondera que não se trata de “começar do zero”, mas questiona não haver uma proposta negociada entre governo e Congresso capaz de gerar incentivos e uma estratégia adequada.
“Ao contrario do que muita gente pensa, a vida do ‘mundo energia’ não depende apenas do setor de energia e não afeta somente o setor de energia. A desarticulação aumenta custo de fazer negócios. Aumenta custos da energia e, com isso, a gente afeta a capacidade de pagamento das pessoas e os negócios das empresas”, avalia Joisa.
“Temos hoje uma visão para tema de renovação de concessão e tarifas que estaria na agenda do ministro Alexandre Silveira. Do outro lado, tem o ministro Rui Costa [Casa Civil] dizendo que não dá para pensar numa proposta de renovação de concessões uniforme que não avalie qual a visão da população. E aí o deputado Barcelar consegue avançar um projeto de lei com apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Nós hoje vemos sinais desencontrados”, resume Joisa.
Incertezas elevam riscos do setor – o que pode levar a conta de luz mais cara
Sales também vê com preocupação a demora do governo em apresentar a proposta prometida desde 2023 e, mais ainda, o avanço do PL que tramita com urgência no Congresso.
Segundo ele, a proposta de reforma cabe ao Executivo. A geração distribuída, diz Sales, é um exemplo dos problemas que ocorrem quando o Legislativo assume a condução das políticas do setor elétrico. Segundo ele, esse tema deveria ter sido norteado por diretrizes técnicas do Executivo para depois ser eventualmente direcionado pelo Legislativo, mas depois saiu do controle e ficou insustentável devido à quantidade de “jabutis” e subsídios que foram sendo criados pelo Congresso.
Sales observa que os leilões de geração e transmissão de energia têm contratos longos, de 20 a 30 anos. Sem previsibilidade das regras, o risco do empreendedor é muito maior, o que repercute nas tarifas que serão pagas lá na frente pelo consumidor.
“O setor elétrico requer muito capital a ser alocado em investimentos que costumam ser de longo prazo. Então é essencial ter previsibilidade, segurança e transparência”, diz Sales. “Se não, há insegurança e o risco cresce exponencialmente, levando a duas situações: investe-se menos para reduzir o risco ou, quando investe, o nível de risco é maior e isso reflete na conta de luz que fica mais cara.”
Um dos maiores focos de tensão é no mercado livre de energia. Lula e o ministro Silveira deram todos os sinais de que esse ambiente de negociação é um dos alvos da reestruturação do setor elétrico.
Para Guilherme Perdigão, CEO da Prime Energia, braço do mercado livre da Shell, o importante é que o governo pelo menos mantenha o que já foi definido até aqui. Mudar as regras estabelecidas prejudicaria o consumidor, as empresas e os investidores.
“Não haver mudanças de regras é o mais importante, já que várias empresas investiram. Entendemos que a abertura do mercado promove um progresso fundamental para a população, para que ela aumente seu poder de escolha de serviço”, diz Perdigão.