Impasse entre estados e União retarda isenção de ICMS sobre tarifa fio e encargos

Data da matéria: 26/08/2022

26/ago/2022, Canal Energia

Distribuidoras e consumidores comemoraram as medidas de redução do ICMS estabelecidas na Lei Complementar 194. Mas ainda aguardam a regulamentação da não incidência do imposto sobre os serviços de transmissão e distribuição e encargos vinculados às operações com energia elétrica. A maioria dos estados não alterou a base de cálculo do tributo, que pode encolher 55%, segundo estimativa do Instituto Acende Brasil.

A lei sancionada em junho estabeleceu um teto para o ICMS de 17% ou 18%, dependendo do estado. A regra vale para energia elétrica, combustíveis, telecomunicações e transporte urbano, e já teve impactos positivos na conta de luz em algumas áreas de concessão.

A LC 194 também incluiu Tust, Tusd e encargos setoriais entre as operações isentas de ICMS. Uma mudança esperada pelo setor, e que já é objeto de uma ação que tramita no Superior Tribunal de Justiça. O impasse entre o governo federal, estados e o Distrito Federal em torno da compensação por perda de receita pode estender a discussão. E, no limite, pode provocar ações judiciais, especialmente por parte de grandes consumidores.

O Comitê Nacional de Secretários de Fazenda dos Estados e do DF estima um impacto de R$25 bilhões por ano, apenas com a alteração da base de cálculo do ICMS sobre as operações  de energia elétrica. O Comsefaz também fala em perdas em torno de R$ 54 bilhões até o fim do ano, com as medidas de redução do ICMS, podendo chegar a R$124 bilhões em 2023.

A Agência Nacional de Energia Elétrica acredita que a regulamentação pelos estados da nova base de cálculo pode reduzir, em média, 7% da conta de luz. A autarquia foi consultada pelo Conselho Nacional de Política Fazendária, que solicitou a explicitação de quais seriam os componentes tarifários que formam os custos excluídos pela lei da incidência de ICMS.

Esses componentes estão dentro da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (Tusd) e da Tarifa de Energia (TE), que compõem  a fatura do consumidor. A agência reguladora entende que é possível alterar a base, a partir do memorial de cálculo.

A Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica também estima uma redução na conta de energia entre 5% e 10%, ficando na média em 7%. Considerando o teto da alíquota mais a não incidência do imposto, o valor pode chegar a algo em torno de R$ 38 bilhões, com uma redução percentual da ordem de 15% na fatura mensal.

Um cálculo feito pela equipe de Energia da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres mostra que a redução seria de 7,38% em média para residências, considerando apenas a isenção do ICMS sobre as parcelas de distribuição, transmissão e encargos. Para a indústria, o percentual é de 5,8%.

“Impacto da alteração da base de cálculo do ICMS é maior que o da limitação da alíquota”
Cláudio Sales, do Instituto Acende Brasil

A redução da base sobre a qual incide o ICMS terá um impacto muito maior que o teto estabelecido na lei para a alíquota a ser aplicada, embora isso seja pouco destacado, explica o presidente do Instituto Acende Brasil, Cláudio Sales. Ele afirma que a redução será de mais da metade da base atual, sendo 18% na transmissão, 31% na distribuição e 6% nos encargos. “Esse impacto é maior que o da simples diminuição da régua para 17%.”

Estudo realizado anualmente pelo Instituto em parceria com a consultoria PwC mostra que, na média, 21% da conta de luz é ICMS. Considerando esse valor, a aplicação da alíquota de 17% significa redução global do tributo em torno de 4,5%.

Sales diz que o consumidor, seja uma grande indústria ou um indivíduo, tem que celebrar a redução efetiva do ICMS sobre a conta de luz. Como observador, ele considera natural a reação dos estados, destacando que no primeiro momento alguns  vão tentar criar algum tipo de barreira ou obstáculo para que isso se torne efetivo. No entanto, a partir do instante em que se tornar mais difícil ampliar a arrecadação, o estado poderá buscar mais eficiência na gestão.

Na tentativa de encontrar uma solução negociada na disputa entre os governos estaduais e a União, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, criou no mês passado uma comissão de conciliação  com representantes das duas partes.

Mendes é relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 984, na qual o presidente da República pede a limitação da alíquota do ICMS, nos 26 estados e no DF, à prevista para as operações em geral. Ele também relata a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7191, em que 11 estados questionam regras da Lei Complementar 192/2022 que determinaram a uniformidade das alíquotas incidentes sobre combustíveis. A lei foi alterada depois pela LC 194.

A comissão deverá apresentar propostas para resolver o impasse federativo na ADPF e na ADI, mas a solução pode abranger outras demandas sobre o tema que estão em tramitação no Supremo, desde que haja concordância dos relatores dessas ações.

Já foram realizadas duas reuniões do grupo em agosto. A próxima está marcada para 16 de setembro, e o prazo para a conclusão dos trabalhos termina, a princípio, em 4 de novembro. Se não houver acordo, a ação segue no STF.

No encontro do último dia 16, Mendes frisou que o tema vai muito além de uma discussão sobre técnicas de tributação, e diz respeito às bases do pacto federativo brasileiro. O ICMS responde por 48,1% da arrecadação total dos estados e 77% da arrecadação tributária, e é a principal fonte de custeio das áreas de saúde, educação, segurança pública e combate à miséria entre outros serviços essenciais, destacou na ocasião.

“Essa é uma pauta prioritária pra gente”, afirma o diretor Institucional e Jurídico da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica, Wagner Ferreira. O executivo não vê dificuldade na aplicação da nova base de cálculo, uma vez que todas as componentes tarifárias sobre as quais deve ser aplicada a isenção já foram apontadas pela Aneel.

Logo após a sanção da lei em junho, a Abradee sugeriu ao Conselho Nacional de Política Fazendária que avaliasse e propusesse as medidas necessárias para que os estados e o Distrito Federal implementassem as mudanças em suas legislações. Também propôs que a Aneel explicitasse os componentes das tarifas “conceituando-os como distribuição, transmissão e encargos setoriais, além de discriminar cada parcela dos componentes tarifários, considerando o atual quadro de componente tarifário.”

E, por último, que os secretários de Fazenda atendessem as solicitações das concessionárias de distribuição para “aplicar de forma ampla e correta” as disposições da lei. Os três pontos foram tratados em uma carta enviada ao ministro da Economia, Paulo Guedes, presidente do Confaz; a Décio Padilha, que preside o Comsefaz; e à então diretora-geral substituta da Aneel, Camila Bomfim.

As próprias distribuidoras fizeram consultas aos estados em relação à aplicação da lei, mas não obtiveram resposta. Para a associação, a mudança já poderia estar beneficiando o consumidor de energia elétrica.

“Nós estamos junto com a Abradee buscando forçar os estados ao cumprimento da lei complementar. Ela foi publicada em junho e só cinco implementaram. A gente sabe que existe uma discussão no Supremo sobre a compensação que a própria lei prevê”, diz a diretora Jurídica da Abrace, Aline Bagesteiro.

Em relação às orientações da Aneel,  a advogada acredita que elas poderiam ser mais detalhadas, embora já sejam suficientes para permitir a aplicação da lei. “Nossos associados estão bastante incomodados com esses aspectos”, afirma a executiva.

Em sua avaliação, as decisões liminares concedidas pelo ministro Gilmar Mendes em relação à compensação das perdas de arrecadação não os isentam de aplicar a lei complementar. E, talvez se os pontos a serem analisados no Supremo não estivessem todos no mesmo bolo, ficasse mais fácil avançar.

Para Bianca Mareque, associada da área tributária do escritório de advocacia Vieira Rezende, a indefinição no cumprimento da lei por um período prolongado pode levar grandes consumidores a recorrer ao Judiciário.

A LC 194 já traz segurança ao contribuinte, na medida em que ele não estará mais sujeito à tributação, mas isso não significa que a isenção será aplicada de forma automática e todas as unidades da federação, explica a advogada.

O caminho para uma eventual “judicialização” seria entrar com uma ação pedindo o reconhecimento de existe uma lei complementar, e que, portanto, não há sujeição do contribuinte à obrigatoriedade de pagamento do ICMS sobre operações que são isentas.

O caminho, no entanto, não é trivial. A ação vai ser ajuizada na justiça estadual, onde a instância seguinte é o Tribunal de Justiça. Do TJ, pode seguir para o STJ e para o STF, se existir questões constitucionais.

Entre os clientes do escritório, alguns contribuintes que tem impacto grande por conta do valor de suas faturas de energia estão acompanhando o tema, mas a posição ainda é de cautela, diante da possibilidade de uma eventual decisão dos estados.

Bianca Mareque lembra que a alteração da base de cálculo do ICMS é uma discussão diferente da questão da essencialidade do serviço de energia elétrica para fins de limitação do imposto à alíquota padrão utilizada pelo fisco estadual. Essa tese já tinha sido firmada pelo STF, mas ganha mais força com a nova lei.

“Entendo a questão de os estados irem ao STF tratar disso, mas eles vão ter que tratar da lei complementar, no meu entendimento. E, como bem destacado, a Tusd é uma discussão diferente, que nem foi julgada ainda pelo STJ. Está lá sobrestada”, diz.

Ela avalia, no entanto, que mesmo com lei, a discussão não está superada no tribunal, uma vez que os ministros não estão sujeitos a essa legislação para fins de análise da matéria em relação ao período anterior a sua vigência. A lei é muito clara em excluir a cobrança para a frente, mas há uma discussão se a cobrança era legal enquanto a regra não existia.

A recém-instalada Frente Nacional de Consumidores de Energia ainda não tem nenhuma decisão sobre o que fazer em relação ao tema. Mas o presidente da entidade, Luiz Eduardo Barata, lembra que essas alterações tributárias deveriam estar inseridas em uma discussão maior de reforma tributária.

A Associação Nacional dos Consumidores de Energia, que integra o fórum, foi uma das entidades que procurou a Aneel defendendo um esclarecimento sobre quais componentes sairiam da base de cálculo do ICMS. A agência entendeu que a explicação do ofício enviado ao Confaz permitiria a aplicação da lei pelos estados, mas poucos, na verdade, estão aplicando, lembra o presidente da Anace, Carlos Faria.

O executivo participou de reuniões na Aneel e no Ministério de Minas e Energia na quarta e na quinta-feira ( 24 e 25 de agosto), mostrando que nos estados onde houve a regulamentação há uma importante redução para os consumidores, mas ainda falta informação da agência reguladora sobre a base de incidência. A associação calcula que seria possível uma redução adicional de 7% na alta tensão.

Faria reconhece que os estados estão querendo proteger a sua arrecadação. Por isso, é necessário um trabalho de convencimento com os secretários de energia aos quais a entidade tem mais acesso, além de atuar no próprio Confaz. “Na minha sensação, a gente tem que trabalhar individualmente com os estados, porque vai ter aquele secretario que vai dar 50 razões para não aplicar [a lei]. A gente vai fazer um trabalho de formiguinha para engrossar a lista.”

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