Itaipu 50 anos: chegou a hora de renegociar

Data da publicação: 24/11/2023

Passaram-se 50 anos desde 30 de agosto de 1973, quando o Diário Oficial da União daquele dia trazia em suas páginas os termos do Tratado de Itaipu. Há quase três meses as bases comerciais que regem o acordo podem ser renegociadas entre o Brasil e o Paraguai, fato que ainda não começou de forma efetiva. Há apenas sinalizações pontuais de que esse momento chegaria em outubro. De qualquer forma, uma coisa é vista como ponto pacifico: a energia excedente da maior UHE da América do Sul, uma das três maiores do mundo em potência instalada, não poderá ter outro destino a não ser os dois países.

Apesar das incertezas criadas sobre quem ficará com a produção após 2023, já que historicamente o Brasil sempre demandou a maior parte da energia produzida ali, e o Paraguai sinalizava que optaria por vender a eletricidade para quem quisesse, o status quo dos últimos 50 anos continuará. Isso se deve ao fato de que apenas questões comerciais é que são passíveis de alteração – regidas pelo Anexo C – o pertencimento da energia está nos termos do Tratado que não está em discussão por serem cláusulas permanentes.

Diz o artigo 13, “A energia produzida pelo aproveitamento hidrelétrico a que se refere o Artigo I será dividida em partes iguais entre os dois países, sendo reconhecido a cada um deles o direito de aquisição, na forma estabelecida no Artigo XIV, da energia que não seja utilizada pelo outro país para seu próprio consumo”.

Oficialmente não há informação de qual é a situação das negociações. Itaipu não fala sobre o assunto nem como estão os estudos para subsidiar as chamadas altas partes – os Ministérios de Relações Exteriores dos dois países.

O Ministério de Relações Exteriores do Brasil afirmou em nota sem detalhes que “Brasil e Paraguai ainda se encontram em fase de coordenação interna com vistas ao lançamento das negociações bilaterais para revisão do Anexo C ao Tratado de Itaipu”.

E termina ao afirmar que “O Ministério das Relações Exteriores, a quem caberá conduzir as negociações pelo lado brasileiro, tem-se coordenado com os órgãos relevantes do Governo com vistas à consolidação de uma posição brasileira em relação às negociações”.

Apesar desse mistério em relação à posição brasileira para o início das negociações, o trabalho está em andamento. Uma pequena ideia do que está sendo visualizado pelo governo foi revelado pelo Tribunal de Contas da União em reunião plenária da quarta-feira, 22 de novembro.

De acordo com o voto do relator do processo no TCU, o ministro Jorge Oliveira, há seis modelos estudados pelo governo federal e, segundo o voto, o Paraguai não poderia vender a energia a outro país justamente porque isso mudaria o tratado, confirmando a avaliação inicial de que a energia será destinada ao Brasil de qualquer forma. Entre as opções que foram mapeadas até o momento estão a de não negociar as bases do Anexo C a até a procrastinação dessa medida “que seria uma estratégia interessante para o país”.

Ainda segundo o voto lido na sessão plenária, a Seinfra Elétrica reportou que há um descompasso entre a compra de energia pela Ande (responsável pelo lado paraguaio) e o consumo do país vizinho. Segundo dados apresentados, o sócio brasileiro tem adquirido energia não vinculada de Itaipu que é mais barata do que a energia vinculada à potência e que deveria declarar como necessidade.

“O Paraguai tem, nos últimos 5 anos contratado, potência inferior à sua real necessidade e suprido a defasagem por meio da energia não vinculada”, relatou. Em 2022 os consumidores paraguaios participaram com 12,25% do custeio de Itaipu e se beneficiaram de 20% da energia de Itaipu. O Brasil respondeu por 87% do custo, mas de 79% da energia gerada.

“Os cálculos estimam que a Ande teve benefício em US$ 2,1 bilhões de 2003 a 2022 em virtude da subcontratação de potência e o uso adicional, claramente os consumidores brasileiros estão subsidiando as contas no Paraguai”, concluiu o ministro.

De acordo com o voto lido, o MRE respondeu ao TCU que essa questão é de difícil abordagem e não vislumbra solução possível a não ser por meio da repactuação do Anexo C, quando esses pontos podem ser analisados já que a negociação é conduzida pelas representações diplomáticas.

O acórdão do processo determinou que a Casa Civil, o MRE e o Ministério de Minas e Energia formulem e apresentem em 60 dias um plano de ação com as atividades, cronograma e estudos necessários responsáveis para o governo revisar o Anexo C. E na metade desse tempo, o MME e a ENBPar devem apresentar o cálculo do montante total da energia vinculada não suprida e encaminhe à Casa Civil para o plano de ações.

Na avaliação do presidente do Instituto Acende Brasil, Cláudio Sales, o artigo 13 do Tratado deixa claro que o sócio brasileiro na usina não pode vender para outros a energia a não ser para o Brasil. Então, a questão está toda sobre o valor a ser pago. Inclusive, depois da dívida paga esse valor deveria ser ao preço de custo.

E é justamente a discussão entre o que é o custo de Itaipu ou não que devem se pautar os dois países, já que a usina está amortizada e foi paga basicamente pelo consumidor brasileiro. Um estudo feito pelo Instituto Acende Brasil indica que o Paraguai teve lucro com Itaipu. Entre os pagamentos e recebimentos estabelecidos no tratado, o Brasil arcou com uma conta de US$ 85,7 bilhões enquanto o Paraguai teve na usina uma fonte de receita no período analisado que somou US$ 5,9 bilhões. Os dados tomaram como base as demonstrações contábeis da Itaipu Binacional.

“É como se a energia de Itaipu tivesse saído de graça ao Paraguai”, definiu Sales.

“Em 2022, último ano da dívida em um ano inteiro, houve US$ 2,5 bilhões entre amortização e juros da dívida, os repasses de US$ 61 milhões, US$ 483 milhões de royalties sendo metade para cada país e encargos de administração e supervisão que somaram US$ 37 milhões. Assim o Brasil pagou US$ 2,79 bilhões, enquanto o Paraguai pagou US$ 495 milhões”, exemplificou.

No ano passado, relata o Instituto, os recursos de Itaipu vieram da receita de prestação de serviços de eletricidade por meio da potência contratada com pouco mais de US$ 3 bilhões, cessão de energia que somou US$ 218 milhões e a energia adicional com US$ 44 milhões. Em termos do destino da geração, 76% destinaram-se ao Brasil e os 24% restantes ao Paraguai. Contudo a receita da usina teve 85% da origem de pagamentos do Brasil.

Nos últimos 22 anos, aponta o Acende Brasil, a usina já supriu 2.802 TWh, desse montante 93,4% foram consumidos no Brasil e o restante ao sócio. Apesar dessa diferença, a tendência é que o consumo paraguaio aumente ao passo que em 10 anos demanda toda a sua metade na central.

O diretor geral do lado brasileiro de Itaipu, Enio Verri, disse em audiência pública na Comissão de Infraestrutura do Senado realizada em 19 de outubro, que a usina representou em 2022 86% da energia do Paraguai e 9% do Brasil, mas já foi 22% do suprimento local. Ressaltou aos parlamentares que se não houver consenso entre as partes as regras permanecem as mesmas.

Questionado sobre o custeio da usina, Verri detalhou que as despesas de exploração da usina somam em 2023 US$ 756,5 milhões. A maior rubrica é em Materiais, Serviços e Outros. E que a tarifa esse ano recuou 26% na comparação com 2021. “De 2009 a 2021 era de US$ 22,6/KW, caiu 8% em 2022 para US$ 20,75/kW e este ano para US$ 16,73”, apontou ele. “Eu quero baixar a tarifa, mas meu sócio quer aumentar. A margem esquerda somos nós e queremos a mais baixa possível porque é inclusão social e o Paraguai a mais alta, porque eles querem os investimentos em seu país”, argumentou ele. O sócio brasileiro vislumbra um novo valor para 2024, independente da renegociação do Anexo C. “A posição do Paraguai é voltar a US$ 20,75/kW”, disse Verri na audiência.

O diretor lembrou que no ano que vem a empresa não deverá ter investimentos na área social em função da necessidade de aportes na linha HVDC que é investimento brasileiro. A atualização tecnológica também consumirá valores importantes.

Alternativas

Enquanto não se chega à renegociação das bases comerciais da usina. As mais diversas teorias e possibilidades surgem. Afinal, o que se tem de consenso é que a forma de alocar Itaipu deve mudar. O setor elétrico brasileiro mudou significativamente desde a primeira metade dos anos 1970. O sistema de transmissão passou a ser interligado, o mercado está em fase de abertura e o consumo no ACL tem crescido de forma expressiva.

De acordo com dados da Abraceel divulgados na quinta-feira, 23 de novembro, referentes a setembro, o ambiente livre soma 36.776 unidades consumidoras, contra 30.083 no mesmo mês do ano anterior. o crescimento verificado ainda é devido às migrações já efetivadas de consumidores de energia em média e alta tensão com demanda maior que 500 kW.

Há, de acordo com números da Aneel atualizados até 31 de outubro, 10.676 consumidores de energia em migração para o mercado livre de energia, a serem efetivadas e contabilizadas a partir de janeiro de 2024.

Segundo a CCEE, o consumo de energia no SIN em setembro somou 70.553 MW médios, desse volume, 44.546 MW médios estão no ACR e 25.987 MW médios no ACL, uma participação de 36,8% de todo o volume consumido no país e que tende a aumentar a partir de janeiro com a abertura da alta e média tensão. À época do Tratado de Itaipu era zero.

Na avaliação de Cláudio Sales, do Acende Brasil, a renegociação dos termos do Anexo C devem incluir o que estava determinado que a energia deveria ser apenas o custo. Não deveria incluir o uso político às custas do consumidor. “É difícil achar um elemento que tenha mais benefícios sociais do que uma energia barata, no mínimo aumenta o bem estar da população e aumenta a competitividade do país”, aponta.

A avaliação da entidade é de que toda a energia deve ser cedida à ENBPar, responsável pela negociação desde a privatização da Eletrobras, a tarifa definia pelo custo e comercializada no ACR e no ACL por meio de leilões. A diferença entre a tarifa de compra e o preço de venda para o mercado, explicou Sales, deveria ser direcionada à CDE para reduzir o encargo cobrado de todos os consumidores.

Para Edvaldo Santana, diretor da Neal Energia, o melhor caminho seria realmente o de não mudar muito o que se tem atualmente. Afinal Itaipu é a última usina de uma cascata com dezenas de UHEs e é importante na otimização do SIN. Mas o destaque seria realmente a questão da tarifa já que a dívida da UHE foi paga integralmente.

Contudo, ele lembra que o Brasil é muito maior que o Paraguai em termos econômicos. E que, por isso, o impacto da receita que é obtida pela usina aqui é proporcionalmente muito menor do que no sócio da margem direita do rio Paraná.

“Dificilmente escaparemos de fazer benfeitorias com recursos de Itaipu. Parte da tarifa vai para a despesa com esse fim. Isso alcança todo o Paraná até municípios do Mato Grosso do Sul. É uma decisão política do Brasil. Na minha opinião o uso excessivo de Itaipu deveria ser proibido, é difícil não se utilizar esses valores, mas o que não pode é exagerar”, opinou Santana.

Em sua análise, a divisão em cotas dessa energia deveria mudar a partir da renegociação. Ele lembra que à época da definição da alocação de energia, o SIN não era interligado como hoje. A produção não tinha como chegar aos outros submercados. Um dos caminhos para essa energia poderia ser a sua alocação no mesmo molde do que é hoje a energia de reserva para todos os consumidores pagarem o mesmo valor. Hoje a energia de Itaipu está bem abaixo do que está na média do ACR, calcula Santana, em R$ 221/MWh ante R$ 280 do mercado regulado.

Esses valores estimados pelo ex-diretor da Aneel estão bem próximos do que apontou Verri, diretor geral da parte brasileira. No Senado, o executivo brasileiro disse que o custo de energia da UHE é a 3ª mais barata do país, fica atrás de outras UHEs que tem o preço em reais, com R$ 213, as eólicas vêm em seguida com R$ 219 e aí Itaipu com R$ 232 por MWh.

Segundo Helder Sousa, diretor de Regulação da TR Soluções, os custos de Itaipu podem ser divididos em duas partes neste ano. A Tarifa de repasse de potência, que representa a soma do CUSE, do fator de ajuste e da cessão da energia do Paraguai, o que totaliza R$ 200/MWh (20,33 USD/kW) e o transporte, tanto do circuito de corrente contínua quanto de corrente alternada, representa R$ 46/MWh. Contudo, esta tarifa não considera os custos associados ao risco hidrológico, que está alocado aos consumidores. Em anos de escassez, como foi o de 2021, a despesa adicional associada ao risco hidrológico pode alcançar patamares próximos a R$ 80/MWh.

“Todos os custos associados à energia proveniente de Itaipu, que considera tarifa de repasse e custos com o transporte, tanto da linha de corrente contínua quanto de corrente alternada, representa cerca de 7,5% da tarifa de aplicação média dos consumidores residenciais localizados nos submercados S/SE-CO, cujas distribuidoras são cotistas de Itaipu”, explica Sousa. Ele lembra ainda que o Pmix das distribuidoras atualmente está em R$ 263 por MWh

O peso da energia de Itaipu seria menor na conta de energia, caso fosse reduzido de forma mais expressiva. Cálculo feito pelo diretor da TR a pedido da Agência CanalEnergia aponta que tomando como base as projeções para 2024, a tarifa média do residencial somente nas 33 concessionárias cotistas de Itaipu e considerando a tarifa de repasse à metade do que é praticado hoje, ou seja, US$ 10,11 por kW, essa retração da tarifa média do residencial ficaria em 4,5%.

Roberto Brandão, pesquisador do Gesel-UFRJ, lembra que a tendência é de que a tarifa de Itaipu recue significativamente uma vez que não há mais a parcela de cerca de US$ 2 bilhões ao ano que era o valor pago por meio da tarifa da central. Ele explica que o custo da energia cairia a menos da metade sem essa parcela uma vez que a usina tem como característica não registrar lucro.

Para ele, o destino da energia não tem outro caminho a não ser o Brasil mesmo porque o Tratado não está em discussão. A questão é onde será alocada. “Há esse compromisso de aquisição, mas a um custo que teoricamente seria menor”, diz. “Essa energia atualmente é alocada em forma de cotas a cada uma das 33 distribuidoras ao preço da tarifa calculada. Entre as opções poderá ser abolido o regime de cotas progressivamente assim que o ACL avança por aqui, mas a forma de negociar a produção aqui é um outro assunto que deve ser discutido internamente”, sugere. “A redução do preço da energia no país é um assunto que coloca à mesa recursos bilionários e quem quer abrir mão desses valores?”, questiona.

O pesquisador duvida ainda se realmente o Paraguai vai querer reduzir o preço da energia uma vez que Itaipu representa uma importante fonte de receita para aquele país.

Fonte: https://www.canalenergia.com.br/especiais/53263984/itaipu-50-anos-chegou-a-hora-de-renegociar

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