Artigo: Leilão de potência elétrica, uma reflexão necessária
09/Out/2020, Canal Energia – Os termos “potência elétrica” e “energia elétrica” não fazem parte do vocabulário cotidiano do cidadão comum, mas a distinção entre os dois conceitos terá impacto crescente no setor elétrico brasileiro.
No mundo da Física, “potência” é a taxa segundo a qual uma ação é realizada por unidade de tempo. Já “energia” é o resultado da aplicação de uma potência durante certo tempo. Aritmeticamente, portanto, “energia” é o produto da “potência” pelo tempo.
Um exemplo pode ajudar. Pensemos em dois domicílios hipotéticos com apenas um eletrodoméstico em cada um deles. O primeiro aparelho tem potência de 1 kW e funciona durante 4 horas ao dia, enquanto o segundo tem potência de 2 kW e funciona por 2 horas ao dia. A energia consumida ao longo de um dia em ambos os domicílios é a mesma: 4 kWh (1 kW x 4 h = 2 kW x 2 h). No entanto, a potência máxima utilizada no segundo domicílio (2 kW) é o dobro da utilizada no primeiro (1 kW).
Guardadas as proporções, estes conceitos também se aplicam ao parque de geração elétrica brasileiro, que hoje conta com 174 GW de potência outorgada para usinas hidrelétricas, termelétricas, eólicas e solares. Afinal, o conjunto de usinas precisa não apenas suprir toda a demanda por energia, mas também atender ao pico de potência instantânea exigida do sistema.
É por isso que é necessária uma quantidade mínima de usinas disponíveis para acionamento pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) em momentos como, por exemplo, o início de uma tarde de verão, quando aparelhos de ar condicionado são mais demandados.
Até recentemente, a matriz elétrica brasileira era capaz de atender à demanda por energia e aos picos de potência com folga porque a maior parte da energia gerada era proveniente de hidrelétricas com reservatórios que funcionam como “estoques” de energia acionáveis pelo ONS nos momentos de pico.
Porém, o aumento da inserção de usinas de geração não controlável – como eólicas e solares, que não podem ser acionadas a qualquer momento pelo ONS porque dependem da disponibilidade de vento e sol – tem limitado a capacidade de resposta aos picos de potência.
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), este fenômeno deve se acentuar nos próximos anos pela redução da geração a partir de termelétricas devido à expiração de contratos de venda energia e devido ao término da vigência de subsídios que reduzem o custo de operação de algumas usinas.
Em 2019, a EPE havia identificado que, em certos cenários, o risco de déficit de potência poderia ultrapassar o nível considerado seguro já a partir de 2024. Com a desaceleração da economia provocada pela covid-19 e a consequente redução da demanda elétrica, o risco de déficit de potência foi postergado para 2026.
Com mais tempo para a busca de soluções para o déficit de potência, as autoridades e agentes do setor têm discutido uma nova modalidade de leilão: o “Leilão de Potência”. O tema, inclusive, foi endereçado na Medida Provisória 998, editada no início de setembro de 2020. Diferentemente dos tradicionais “Leilões de Energia”, o “Leilão de Potência” contrataria usinas dedicadas ao atendimento dos picos de potência pelo sistema.
Um atributo essencial que deveria ser ofertado nestes leilões é a chamada “despachabilidade sob demanda”. Uma usina “despachável” é aquela que pode ser acionada pelo ONS sempre que houver necessidade. Portanto, a partir desse atributo principal, quais seriam as fontes de energia com as características necessárias para participar de um Leilão de Potência? A resposta pode ser dada pela própria EPE, que simulou, em seu Plano Decenal de 2019, duas alternativas de geração para suprimento de potência: usinas termelétricas (Caso 4) e hidrelétricas (Caso 5).
No caso de termelétricas, cenários com a expansão ou redução do parque termelétrico indicam que estas usinas são eficazes na diminuição do risco de déficit de potência. Mas a EPE propôs avaliar outras tecnologias que poderiam cumprir o mesmo objetivo e sugeriu a análise da alternativa abaixo.
No caso de hidrelétricas, a minimização do custo da solução seria implementada por modificações em hidrelétricas já existentes a fim de torná-las aptas a oferecer o “produto potência” via repotenciação das unidades geradoras em operação ou adição de novas unidades geradoras em hidrelétricas que possuem estrutura civil já construída.
No entanto, a eficácia da fonte hidrelétrica para agregação de potência ao sistema requer ajustes regulatórios que permitam a adequada remuneração deste tipo de investimento, uma vez que o atributo atrelado à despachabilidade hidrelétrica não é atualmente valorizado. Se esse atributo passar a ser precificado em um eventual leilão de potência, tal fonte poderia aumentar sua atratividade.
A postergação do risco de déficit de potência de 2024 para 2026 não torna essas adequações regulatórias menos oportunas ou relevantes. O Brasil possui um parque hidrelétrico relativamente antigo e, justamente por isso, os contratos de concessão preveem a obrigação de modernização das usinas.
Tal modernização não necessariamente inclui repotenciação ou ampliação das hidrelétricas, mas se houver sinal regulatório para contratar esse acréscimo de capacidade, seria possível aproveitar essa oportunidade e oferecer ao sistema essa potência que poderia ser mais competitiva do que aquela disponibilizada por novos empreendimentos que precisariam embutir o custo integral de implantação em seu preço.
Ganhamos algum tempo e temos opções. O importante é que a seleção da fonte mais adequada para eliminar os riscos de déficit de potência elétrica nos próximos anos respeite o infalível critério da competição transparente e isonômica entre as fontes de energia.
O desafio de nossos formuladores de políticas públicas envolve, portanto, o rápido estabelecimento de regras que garantam competição justa entre as fontes a fim de que os empreendedores possam se preparar o quanto antes para os futuros certames de oferta de potência, beneficiando o consumidor com contas de luz menores e suprimento elétrico mais confiável.
Claudio J. D. Sales e Eduardo Müller Monteiro são Presidente e Diretor Executivo do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)