Mudanças climáticas são desafio para o setor elétrico
Enchente no Sul do país expõe fragilidade do sistema, que precisa se adaptar a fenômenos extremos. Especialistas apontam alternativas de reestruturação e respostas adequadas aos desastres naturais, que devem se tornar cada vez mais frequentes
A mudança de padrões na temperatura, entre chuva e seca intensas, é um desafio enfrentado em todo o mundo, e o sistema elétrico é um dos mais afetados pelos fenômenos extremos. Essa nova realidade, em que os desastres naturais acontecem com cada vez mais frequência, exige adaptação.
Nos últimos anos, a incidência de eventos climáticos extremos atingiu patamares nunca antes observados. No Brasil, a Organização Meteorológica Mundial (OMM), da ONU, contabilizou 12 eventos climáticos no país somente no ano passado. De acordo com a agência, nove dessas ocorrências foram consideradas “incomuns” e duas “sem precedentes”.
O Rio Grande do Sul, afetado drasticamente pelas chuvas intensas desde o fim de abril, também viveu momentos difíceis, em menor escala, em 2023. A região do Vale do Taquari, que abrange 40 municípios gaúchos e é a mais afetada do estado, já havia sido atingida por um ciclone em setembro do ano passado. Novamente, em janeiro, as cidades da região passaram por outro momento de chuvas intensas.
Em tragédias como o estado sofre neste momento, o principal e mais urgente é salvar o maior número possível de vidas. Mesmo assim, quando a água baixa, desafios em grande escala surgem aos governos, e a infraestrutura sofre danos significativos. Problemas ligados a moradias, transportes, saneamento básico, educação, saúde e energia são alguns exemplos de setores mais afetados.
No caso do setor elétrico, ainda não é possível mensurar completamente o estrago causado pelas inundações no Sul do país. Responsável por dois terços da distribuição de energia no estado, com 6 mil km de linha e usinas hidrelétricas, a CPFL Energia contabilizou que 100 mil clientes ainda permaneciam com fornecimento desligado na semana passada.
“Isso passou a ser uma realidade do estado e a gente vai ter que olhar para dentro e entender como operar os nossos ativos em uma condição tão extrema como essa”, destacou o presidente da CPFL, Gustavo Estrella, em debate promovido pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib).
As mudanças climáticas impulsionaram também o aumento de decretos de calamidade pública. Dados do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR) mostram que 2023 registrou o maior número de decretações de situação de emergência em uma década. Nesse contexto, o Rio Grande do Sul foi o estado mais afetado, com a expedição de 2.758 decretos. De 2021 até o ano passado, o número de dias decretados como calamidade pública no Brasil aumentou 51%.
Resposta adequada
De acordo com o Instituto Acende Brasil, os impactos mais reiterados por estudiosos do setor em relação às mudanças climáticas são o aumento da temperatura média e de ventos em áreas secas e litorâneas, além da diminuição das chuvas e da elevação do nível do mar. Fatores como calor extremo, ventos fortes, tempestades, inundações, deslizamentos de terra, aridez, raios e incêndios, devem ser motivo de atenção cada vez maior para os líderes do setor de energia.
Para o presidente do instituto, Claudio Sales, o Brasil tem que ser capaz de dar uma resposta adequada para os eventos climáticos, apesar de não ser possível evitar os desastres. “Minimizar, por menos que seja, vale a pena fazer. Agora, tem que ter sempre presente que em um evento climático extremo, não vão ser esses tipos de ações e mitigações capazes de fazer com que não se sofra os efeitos. Isso é um choque de realidade”, afirma Salles ao Correio.
Na avaliação do diretor para Assuntos Socioambientais e Sustentabilidade do Acende Brasil, Alexandre Uhlig, o país está relativamente preparado para a mitigação e redução de emissões de gás de efeito estufa. Apesar disso, na parte de adaptação, o especialista avalia que ainda há pouca estrutura, tanto para o setor elétrico quanto para os demais segmentos.
“O Brasil já tem um sistema elétrico montado e direcionado para, no caso de dano em uma linha elétrica, você ter outras linhas que complementam, que atendem aquela carga. Já há esses sistemas, mas é preciso olhar com mais atenção os pontos de vulnerabilidade, para que, acontecendo esses eventos climáticos extremos, o país sofra o mínimo possível”, avalia.
Outro acontecimento que impactou a distribuição de energia no país foram os fortes ventos registrados em São Paulo, em novembro do ano passado, que atingiram a velocidade de 103,7 km/h no Aeroporto de Congonhas, no dia 3 daquele mês. “No Brasil, nós dimensionamos ventos da ordem de 100 km/h. E a gente já tem observado ventos acima dessa velocidade. Então, vai precisar de um reforço”, explica Uhlig, que lembra que algumas áreas da capital paulista chegaram a ficar cinco dias sem luz.
Fundo contra desastres
Com base nos eventos recentes registrados em todo o país e nas falhas estruturais apresentadas no segmento, especialistas do Acende Brasil elaboraram possíveis ações de adaptação para a melhoria do sistema elétrico brasileiro, em situações de eventos extremos.
Em casos de ventanias fortes, o instituto elenca cinco exemplos de adaptação: ajuste dos padrões de carga de vento em projetos futuros; redefinição de rotas das linhas em áreas abertas e ao longo de estradas; poda regular de árvores; investimento em ferramentas de predição de tempestades e furacões; e (considerar) uso de linhas subterrâneas.
Algumas das propostas exigem um alto investimento público e privado, como é o caso das linhas subterrâneas. Já em situações de enchentes causadas por chuvas intensas, a exemplo do Rio Grande do Sul, as indicações são a melhoria no projeto de isoladores e a definição, se possível, de locais fora de áreas de perigo para a instalação de linhas.
As propostas foram publicadas no ano passado. Para o diretor de Sustentabilidade do Acende, no caso gaúcho, provavelmente essas soluções não teriam muito efeito, devido à proporção do desastre. Uma das soluções seria a criação de um fundo voltado para a solução de problemas voltados às mudanças climáticas.
“O Brasil não tem uma reserva de contingência para enfrentar uma situação dessas, ao mesmo tempo que briga para conseguir cumprir o seu compromisso fiscal. Ou seja, se acontece uma situação dessa, você penaliza ainda mais um país que está combalido, do ponto de vista financeiro”, sustenta Uhlig.
O presidente do Acende Brasil, Claudio Sales, salienta que é preciso reconhecer o aumento da frequência desses eventos extremos para que o país consiga se preparar satisfatoriamente. “Agora, melhorar é uma coisa. Mas ficar imune a coisas desse tipo você não fica. Então é importante tomar medidas de adaptação para, em alguma medida, por menor que seja, mitigar os efeitos de uma tragédia como a do Sul.”
Compromisso universal
De acordo com o Ministério de Minas e Energia, os desastres ocorridos no Sul geraram um dano de mais de R$ 1,1 bilhão no sistema elétrico do estado. Mais de 2 milhões de pessoas ficaram sem energia durante o período mais intenso da crise. Até a última semana, mais de 80% desse total já havia tido o fornecimento de energia restabelecido.
O economista e presidente do LIDE Energia, Roberto Gianetti da Fonseca, afirma que o problema das mudanças climáticas é universal e que foi deixado de lado desde o século XIX, quando a produção industrial por meio do carvão e do petróleo se intensificou. “A questão das mudanças climáticas, só não enxerga quem é cego ou negacionista. Porque é uma evidência empírica, está na luz do dia”, frisa.
“Não adianta o país A, B ou C tomar providências incríveis, se os outros também não fizerem. Então tem que ser um compromisso universal. E isso tem sido muito difícil de ser alcançado, eu acho que seria o caso até, de repente, de haver sanções econômicas em cima dos países que não cumprirem metas, porque eles estão prejudicando a coletividade e a energia faz parte dessa equação”, ressalta Gianetti.
Uma proposta levantada pelo economista seria a criação de uma secretaria especial voltada para o tema de acidentes climáticos, que estaria diretamente subordinada à Presidência da República. Em sua visão, as atividades conduzidas pela pasta seriam divididas em três etapas: prevenção, emergência e recuperação. “Eu acho que é a forma que nós devemos, daqui em diante, lidar com esses acidentes, que serão cada vez mais frequentes.”
Regulação
Outro problema do setor elétrico, apontado pelo especialista em energia e sustentabilidade na BMJ Consultores Associados León Rangel, é a falta de diretrizes claras e combinados setoriais, que impliquem contratos de outorga de concessão na estrutura legislativa. Segundo ele, o ideal seria destravar uma reforma no setor elétrico, o que necessitaria de esforços tanto do Executivo quanto do Congresso Nacional.
“A reforma traria dois benefícios que nos prepararia indiretamente para as mudanças climáticas. O primeiro é aumentar o nível de investimento. As empresas teriam mais incentivos por uma regulamentação melhor e segurança jurídica para cortar dinheiro, o que implica também adaptação climática, vai ser inevitável daqui para a frente. Isso permitiria, a depender de como for desenhado, o ingresso de novas fontes de energia elétrica”, avalia.