O que a Itaipu está fazendo com a “sobra” de bilhões de dólares

Data da publicação: 05/02/2025

Dois anos após a quitação do financiamento pela construção da usina de Itaipu, o destino da “sobra” bilionária é questionada por representantes do setor de energia e pela oposição ao governo Lula, que aponta para uso de recursos da hidrelétrica para fins políticos, como patrocínios de eventos, formalização de convênios e repasses para municípios. A situação é alvo de um pedido de intervenção e fiscalização encaminhado ao Tribunal de Contas da União (TCU) pela Subcomissão Especial da Itaipu na Câmara dos Deputados.

A expectativa no setor elétrico – corroborada por discursos políticos ao longo de 50 anos – era que a conta de energia do consumidor brasileiro fosse beneficiada pela economia de cerca de US$ 1,5 bilhão por ano, valor destinado ao longo de cinco décadas ao pagamento das parcelas das obras para construção da usina, localizada em Foz do Iguaçu (PR), na fronteira entre Brasil e Paraguai. No entanto, o novo acordo diplomático do chamado Anexo C do Tratado de Itaipu, conduzido pelo governo Lula e a política petista de investimento em projetos socioambientais frustraram esse cenário de redução da conta de energia.

Um estudo da Academia Nacional de Engenharia (ANE Brasil), publicado pelo Comitê Permanente de Energia, aponta que o “serviço da dívida” começou a diminuir a partir de 2022 e foi zerado nos dois anos seguintes, quando a tarifa de Itaipu poderia ter baixado significativamente. “Não diminuiu porque o extinto serviço da dívida foi substituído por novas despesas, não previstas no tratado original e de questionável legitimidade à luz do tratado, as chamadas ‘benfeitorias socioambientais’. Nos últimos três anos a despesa de exploração foi aumentando à medida em que o serviço da dívida foi sendo reduzido”, expõe a análise.

O levantamento calcula quase US$ 1,5 bilhão por ano, a partir de 2024, alocados em partes iguais para benfeitorias no Brasil e Paraguai, montante acrescido aos US$ 700 milhões anuais, que já estavam previstos no orçamento. Entre 2023 e 2024, a atual gestão petista tem patrocinado eventos como o Janjapalooza e a COP-30, que será realizada em Belém (PA), em novembro, na região amazônica.

O evento no Norte do país vai receber ao menos R$ 1,4 bilhão de Itaipu para obras de infraestrutura. Em entrevista à Gazeta do Povo, em dezembro, o presidente do instituto Acende Brasil, Cláudio Sales, alertou para o “orçamento paralelo” da gestão petista, com o intuito de custear projetos socioambientais sem relação com o setor de energia elétrica.

Faltam mecanismos para fiscalizar e acompanhar o orçamento de Itaipu

Historicamente, o país é responsável por cobrir a maior parte dos custos da usina hidrelétrica, o que desequilibra a conta entre os parceiros, que dividem as “sobras”, mas não as despesas. “O Brasil arca não com a metade, e sim com cerca de 80% dos custos. São os consumidores cativos das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste que pagam a conta, embutida em suas contas de suprimento de energia elétrica”, aponta o Comitê Permanente de Energia da ANE, que critica a falta de mecanismos para fiscalização e acompanhamento do orçamento da Itaipu Binacional.

“Como apenas uma parcela dos que pagam a conta se beneficiam das benfeitorias, majoritariamente os habitantes do Paraguai e do estado do Paraná, trata-se de uma política pública de transferência de renda sem autorização do Congresso Nacional, contrariamente ao que determina a Constituição”, completa o estudo.

Procurada pela Gazeta do Povo, a assessoria de imprensa de Itaipu respondeu que a reportagem trata “inadequadamente como sobras” os valores do orçamento total para manutenção e investimentos da binacional, montante dividido igualmente entre os dois países. “O Anexo C estabelece que a receita decorrente dos contratos de prestação dos serviços de eletricidade, definida em acordo entre o Brasil e o Paraguai, deve ser igual ao custo do serviço, de forma que não há sobras ou prejuízo em sua operação”, respondeu em nota.

A gestão da Itaipu Binacional também defendeu os valores destinados aos projetos socioambientais. “Eles fazem parte da missão da empresa e são imprescindíveis para garantir a operação contínua e a ampliação da vida útil da usina, que atualmente é de 194 anos, garantindo a geração de energia para as próximas gerações.”

Entre os investimentos citados no setor de energia estão a modernização tecnológica nos sistemas de controle e proteção das 20 unidades geradoras de energia, de subestações, dos serviços auxiliares, das comportas do vertedouro e da barragem, orçados em R$ 3,4 bilhões.

Deputado entra com pedido de intervenção e fiscalização de Itaipu no TCU

Presidente da Subcomissão Especial da Itaipu, o deputado federal Nelson Padovani (União-PR) entrou com um pedido de intervenção e fiscalização da Itaipu Binacional no Tribunal de Contas da União (TCU) pelo uso político-partidário do orçamento da empresa estatal. “Em pouco mais de um ano, a Itaipu gastou R$ 43,8 milhões apenas em patrocínios a atividades não relacionadas à geração de energia elétrica e aos impactos socioambientais da usina. Em convênios com o setor privado, são mais R$ 749 milhões, entre 2023 e agosto de 2024, de direcionamento questionável”, aponta o documento.

Em entrevista à Gazeta do Povo, o deputado afirmou que a usina hidrelétrica está sendo usada politicamente pelo governo do PT com envio de recursos para associações indígenas e entidades ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “Não é dinheiro de Itaipu, é dinheiro público. É dinheiro que veio dos consumidores, pois a empresa é estatal. Agora, está sendo usada como os Correios e a Petrobras. É o novo ‘Itaipuduto’, assim como tinha o Petrolão, com uma saída gigante de dinheiro público”, criticou.

Padovani aponta ao TCU que a Itaipu Binacional destinou R$ 24,8 milhões para o projeto “Opaná: chão indígena”, sob responsabilidade da Fundação Luterana de Diaconia (FLD), convênio de 24 meses, firmado como “reparação de uma dívida histórica com as comunidades indígenas”. A tese é defendida pela gestão petista por causa da formação do lago de Itaipu durante o processo de construção da usina.

“Não é dinheiro de Itaipu, é dinheiro público. Agora, está sendo usada como os Correios e a Petrobras. É o ‘Itaipuduto’, assim como tinha o Petrolão, com uma saída gigante de dinheiro público. Deputado federal Nelson Padovani (União-PR)

Ao confirmar o convênio, o diretor-geral brasileiro da Itaipu, Enio Verri, afirmou que o projeto Opaná “está totalmente alinhado à missão da atual gestão da Itaipu” e que a intenção é apoiar políticas públicas de reparação ao povo Guarani, na região oeste do Paraná, que teria sido impactado pelas obras da usina hidrelétrica na década de 1980.

“Nós sabemos que, quando da construção do reservatório, muitas comunidades foram atingidas. Ainda há dívidas a serem pagas, e nós queremos trabalhar fortemente para isso. Não tenho certeza se a nossa gestão terá tempo suficiente para atender tudo aquilo que eles merecem, mas faremos o possível para que o máximo seja alcançado”, declarou Verri.

Padovani criticou as ações de reparação da gestão petista e afirmou que o lado paraguaio tem incentivado a economia e o empreendedorismo com os recursos da usina hidrelétrica. Do lado de cá da fronteira, segundo ele, a narrativa imposta pela diretoria de Itaipu incentiva as invasões de terras e o conflto no campo.

“A gestão do lado brasileiro diz que tem uma dívida histórica. Por que o Paraguai não diz isso, se o lago é o mesmo?  Eles estão jogando contra o Brasil. É uma diretoria que está jogando contra a soberania nacional”, atacou o parlamentar. Além disso, o pedido ao TCU cita o convênio de R$ 80,7 milhões que foi firmado com a Cooperativa Central da Reforma Agrária do Paraná (CCA-PR), ligada ao MST, e obras na Universidade Federal Latino-Americana (Unila), orçada em R$ 752 milhões.

Ainda há dívidas a serem pagas, e nós queremos trabalhar para isso. Não tenho certeza se nossa gestão terá tempo para atender tudo que as comunidades merecem, mas faremos o possível. Diretor brasileiro da Itaipu Binacional, Enio Verri

No final de janeiro, foi encerrado o período de inscrição do novo edital do Programa Itaipu Mais que Energia, em parceria com a Caixa Econômica Federal, com 1.669 projetos na área de influência de Itaipu, que abrange 434 municípios: 399 do Paraná e outros 35 do Mato Grosso do Sul. Segundo a empresa, a previsão de investimentos é de R$ 400 milhões para organizações sociais nos eixos de Conservação da Biodiversidade, Desenvolvimento Comunitário, Produção Sustentável e Saúde e Bem-estar Social.

Cidades do Paraná também foram beneficiadas com verbas da hidrelétrica para pavimentação asfáltica nos últimos dois anos. O presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, Luiz Eduardo Barata, afirma que os municípios paranaenses e sul-mato-grossenses são os mais contemplados, o que é desigual para os consumidores das outras regiões do país.

“Faz-se um derrame de recursos financeiros no Paraná e no Mato Grosso do Sul. Mas isso é muito perverso para a população dos demais estados que compõem as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste do país”, opina.

“É necessário rever o acordo do anexo C”, diz presidente da Frente dos Consumidores de Energia

O presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia defende que é necessário que o governo brasileiro volte a negociar o anexo C do Tratado de Itaipu, que foi firmado com o Paraguai no ano passado, após o encerramento do financiamento para a construção da usina. “Nós deixamos de pagar a dívida e foi inserida nas despesas uma série de obras que são estranhas à exploração de Itaipu”, afirma Barata.

“O acordo é muito ruim, se é bom para alguém, deve ser para o Paraguai”, completa. Segundo os dados da ANE Brasil, a despesa de exploração de Itaipu triplicou, saindo de US$ 700 milhões por ano para quase US$ 2,2 bilhões.

“Portanto, as negociações do triênio de 2022, 2023 e 2024, em lugar da aplicação pura e simples do anexo C do tratado, elevaram a despesa de exploração da Itaipu em quase US$ 1,5 bilhão por ano”, revela o estudo.

Barata admite a dificuldade de revisão do acordo, que foi repactuado há menos de um ano e cobra a participação de diferentes setores na discussão entre os países parceiros. “É necessário rever o acordo do anexo C de forma diplomática, com todas as partes envolvidas, principalmente os pagadores da conta. Os consumidores dos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Minas, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Goiás. O Brasil precisa mudar a maneira de tratar essas questões e ouvir as partes envolvidas. Esse acordo é absolutamente esdrúxulo”, critica.

O estudo da ANE aponta que foi adotado um “conceito de negociação” na discussão entre os governos brasileiro e paraguaio, ao invés do alinhamento técnico previsto no Tratado de Itaipu para renovação do anexo C, que resultou em uma tarifa paga pelo Brasil acima do previsto. O levantamento calcula que a tarifa regulada, conforme o Tratado, deveria ser de aproximadamente US$ 9/kW no ano passado. No entanto, o valor negociado do Custo Unitário do Serviço de Eletricidade (Cuse) foi fixado em US$ 19,28/kW mês até 2026.

“Seja pelo conteúdo do Tratado, seja pelo próprio conceito de ‘negociação’, a tarifa de Itaipu deveria ser regulada e não negociada. É claro que aceitar uma negociação nessas condições, além de se afastar do que preconiza o Tratado, resultaria na sistemática elevação da tarifa e a única forma de fechar essa conta seria inflando as despesas operacionais da empresa”, aponta o estudo da ANE Brasil.

Em nota, a Itaipu Binacional respondeu que mais de 97% da população brasileira recebeu o “bônus Itaipu” em janeiro, um desconto na conta de luz de até R$ 49, resultado da distribuição do saldo positivo da hidrelétrica referente a 2023. Segundo a usina, o valor foi de R$ 1,3 bilhão em crédito na conta de luz, medida que impactou na redução da inflação no mês passado.

Além disso, a empresa argumenta que, com o término do pagamento da dívida, a hidrelétrica reduziu a tarifa de energia em 26%, com impacto na conta de luz. “Atualmente, o custo de repasse da energia da Itaipu às distribuidoras é de R$ 204,95/MWh, enquanto a média das demais hidrelétricas é de R$ 300/MWh. Ou seja: Itaipu puxa o preço da energia elétrica para baixo no Brasil.”

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