Artigo: Os desafios da sobreoferta de energia: vertimentos e curtailment
Em 2021, o sistema elétrico passava por aperto. Ao final do pior ciclo de estiagem do histórico, o país vivia o risco de apagões por falta de energia em determinados horários do dia. Depois de dois anos, o sistema elétrico se defronta com um novo desafio. Desta vez, por sobreoferta de energia.
Pode parecer anti-intuitivo que os geradores de eletricidade possam sofrer prejuízos tanto na escassez como na abundância, mas esta é a realidade.
Na escassez, os geradores sofrem com a baixa produção, o que reduz as suas vendas e, em muitos casos, acarreta custos adicionais, já que para honrar seus contratos de venda de energia os geradores precisam compensar a redução de seu próprio suprimento adquirindo energia no mercado de curto prazo a preços elevados.
Já na abundância, os geradores também podem sofrer perdas. Parte da queda de rentabilidade deve-se à redução dos preços de energia, mas há outra ameaça que aflige os geradores nestes períodos: a redução de sua produção potencial tanto por meio de vertimentos turbináveis quanto por meio do ´curtailment’, conceitos explicados abaixo.
Os vertimentos turbináveis ocorrem quando parte da água que chega à hidrelétrica é escoada pelo vertedouro em vez de pelas suas turbinas para produzir energia, o que caracteriza um desperdício de energia potencial que poderia ser produzida a baixo custo. Isto ocorre quando o sistema não dispõe de capacidade para receber energia adicional da usina, mas a hidrelétrica precisa escoar água, seja por falta de capacidade de armazenamento adicional no seu reservatório, seja para atender às exigências de defluência mínima, um requisito técnico que demanda um fluxo mínimo de água rio abaixo da usina.
O fenômeno também ocorre com parques eólicos e solares na forma do curtailment, termo em inglês para designar a redução da produção de energia dos parques geradores por ordem do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que é a autoridade responsável pela operação do Sistema Interligado Nacional.
Parte dos vertimentos e do curtailment se deve a restrições do sistema de transmissão, seja por falta de capacidade de escoamento, seja por questões de confiabilidade. Mas a maior parte dos vertimentos e do curtailment atualmente ocorrem porque a geração potencial das fontes renováveis supera a carga líquida (ou o consumo instantâneo líquido), já considerada a chamada ´geração inflexível´. Ou seja, os vertimentos e o curtailment acontecem porque há uma sobreoferta estrutural: a oferta instantânea supera a demanda instantânea.
O fato é que a maior parte da geração no sistema elétrico brasileiro é inflexível ou não controlável pelo ONS. Portanto, em dados momentos é preciso desperdiçar energia potencial na forma de vertimentos turbináveis ou curtailment.
A maior parte dos vertimentos tende a ocorrer no período úmido, quando as vazões afluentes (volume de água que chega às hidrelétricas) são maiores. Já o curtailment tende a ocorrer no início do segundo semestre, quando a produção eólica e solar se intensificam. A maior parte do curtailment ocorre nos domingos e feriados, quando a carga é menor, mas a produção permanece a mesma. O fenômeno atinge principalmente os parques solares, pois estes têm a sua produção concentrada em poucas horas do dia, quando o problema é mais agudo.
Olhando para frente, percebe-se que o problema tende a se agravar. Projeções indicam que o curtailment deve continuar aumentando nos próximos anos até representar cerca de 6% da geração potencial das fontes eólica e solar por volta de 2026 e 2027. Já os vertimentos turbináveis, que nos últimos anos representavam no máximo 5 a 6% da geração hidrelétrica, passaram a representar cerca de 13% da geração hidrelétrica em 2023.
A Aneel já estabeleceu regulamentos (Resoluções Normativas 1.030/2022 e 1.073/2023) para compensar os geradores eólicos e solares pelos efeitos do “constrained-off involuntário” (outro termo para o curtailment), mas estes proporcionam compensação apenas para uma pequena parcela do curtailment. Estes regulamentos tratam da alocação dos prejuízos provocados pelo curtailment incorrido, mas não endereçam o que pode ser feito para minimizar a ocorrência dos vertimentos e curtailment.
Há várias medidas que podem ser tomadas para minimizar os vertimentos turbináveis e o curtailment, entre as quais:
- Promover a exportação de mais energia para os países vizinhos que apresentam custos marginais de operação mais elevados. Essa iniciativa seria um ganha-ganha para ambos os países: nós venderíamos energia excedente, que atualmente está sendo desperdiçada, e nossos vizinhos teriam acesso a eletricidade mais barata.
- Negociar o deslocamento da inflexibilidade das termelétricas cujos contratos têm cláusulas de inflexibilidade sazonal (isto é, com contratos que preveem produção inflexível em parte do ano) para outros períodos do ano a fim de minimizar os vertimentos e o curtailment.
- Buscar o deslocamento da geração termelétrica e hidrelétrica durante os domingos e feriados para dias úteis da mesma semana, sempre respeitando as possibilidades técnicas de cada usina.
- Incentivar a instalação de tecnologias de armazenamento – como baterias e usinas reversíveis – que permitam um melhor aproveitamento dos recursos já implantados.
- Alterar alguns itens da legislação que têm contribuído para a sobreoferta de energia nos últimos anos, especificamente: (i) disciplinar a caracterização de autoprodutores para englobar somente os agentes que efetivamente investem em usinas próprias; e (ii) reduzir os subsídios cruzados oferecidos aos consumidores que implantam minigeração ou microgeração distribuída.
- Robustecer o sistema de transmissão para eliminar gargalos de escoamento de energia das áreas superavitárias para as áreas que possam aproveitar a energia. Isto inclui a ampliação das interligações regionais e a modernização das redes para lidar melhor com a variabilidade da geração proveniente das fontes eólica e solar. Também inclui a ampliação da provisão de serviços ancilares necessários para resguardar a estabilidade da corrente elétrica diante das muitas ocorrências que podem abalar o sistema.
- Ampliar a participação de fontes flexíveis e controláveis na matriz elétrica, de modo a aumentar a capacidade de usinas que possam ser acionadas apenas quando necessárias para atender à carga do sistema.
- Implementar uma nova sistemática de leilões que promova a contratação de Lastro de Produção, em linha com a abordagem geral proposta na Consulta Pública 146/2022 do Ministério de Minas e Energia (embora com aperfeiçoamentos na definição dos ´produtos´ a serem contratados nos leilões). Isto proporcionaria um fluxo mínimo de receitas constantes para os geradores que ajudaria a recuperar os custos dos investimentos, trazendo um auxílio importante nestes períodos de abundância, quando os preços desabam e os geradores ficam sujeitos à subcontratação, aos vertimentos turbináveis e ao curtailment.
O desafio por trás dos vertimentos turbináveis e do curtailment demonstra a complexidade do setor elétrico. Novos riscos parecem brotar dos lugares menos esperados, e são frutos das relevantes mudanças na composição da matriz elétrica. Precisamos ser ágeis na evolução da regulação e na adaptação dos mecanismos de mercado para propiciar respostas tempestivas e adequadas para estes novos desafios.
Richard Lee Hochstetler e Eduardo Müller Monteiro são Diretor Regulatório e Diretor Executivo do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)