Artigo: Os perigos do reducionismo no setor elétrico

Data da publicação: 22/10/2024

O setor elétrico é um alvo perfeito para os discursos políticos. E provavelmente nunca deixará de ser, pois é um setor tecnicamente complexo – e, portanto, difícil de ser entendido e explicado – e que entrega um serviço essencial para todos os cidadãos e toda a cadeia produtiva de qualquer país. Uma combinação muito boa para construir narrativas reducionistas.

O reducionismo é um conceito não necessariamente ruim, pois pode ser útil para expressar fenômenos complexos usando termos e fenômenos mais simples. Mas pode ser extremamente perigoso quando usado para simplificar de forma incorreta relações entre causa e efeito como, por exemplo: “se um efeito aconteceu depois de um fato, o fato é a causa do efeito”.

Portanto, no mundo do reducionismo não importa a análise global de fatos e números. Basta achar uma relação causal aparentemente correta sob uma lente superficial para construir uma tese, por mais absurda que a tese seja quando examinada com o mínimo de rigor ou honestidade intelectual.

Falácias causais se alimentam do reducionismo, e é isso que temos visto no setor elétrico nas últimas semanas, especialmente depois do evento climático extremo que assolou São Paulo no dia 11 de outubro e afetou o serviço de eletricidade para 3 milhões de consumidores da Enel, concessionária que restabeleceu 100% das conexões afetadas em cinco dias.

A lista de exemplos de reducionismo que dominou a semana passada é longa, mas por limitação de tempo e espaço destacaremos dois dos mais gritantes: (1) a culpa é da empresa distribuidora; e (2) a culpa é da agência reguladora.

Na primeira falácia causal que coloca a culpa sobre a Enel, os ataques vieram em diversos formatos, mas o que mais vimos foi o oportunismo de políticos nas três esferas da federação – prefeito, governador e ministro – querendo a “cassação” do contrato de concessão da concessionária.

O jogo político aqui foi fortemente baseado em afastar qualquer desgaste da opinião pública que prejudicasse os dois candidatos no segundo turno das eleições municipais de São Paulo – que acontecerá em poucos dias – e empurrá-lo para a distribuidora de energia, “punindo-a” com a cassação. Como se a cassação fosse evitar que o fato que gerou a interrupção – um evento climático extremo – não fosse mais ocorrer com um novo e onipotente/onisciente operador da concessão.

Na segunda falácia causal vimos a confirmação de uma tese propagada há meses por duas altíssimas autoridades federais: o ataque ao conceito de agência reguladora, mas agora turbinado pelos efeitos da tempestade de 11 de outubro. No contexto do setor elétrico ou de qualquer outro setor de infraestrutura, a agência reguladora é uma entidade fundamental para blindar setores intensivos em capital (cujo retorno é medido em décadas) de pressões políticas (cuja lógica é de curto prazo e com olhos nas próximas eleições).

Reguladores não podem estar sujeitos aos mandos e desmandos de políticos, pois protegem contratos e investimentos que atravessarão muitos mandatos: um contrato de concessão de distribuição (tipicamente de 35 anos) ou de usina hidrelétrica (30 anos) atravessa mais de 8 eleições presidenciais se elas ocorrerem a cada quatro anos.

É exatamente por isso que as duas autoridades federais acima não se conformam com a existência de um regulador que não se submete a seus comandos. Alguns políticos não querem uma entidade de Estado – como é uma agência reguladora – que decida e aja tecnicamente. Querem mais um órgão de governo que “obedeça” de acordo com seus objetivos e interesses imediatistas. Imagine se cada novo presidente ou governador quisesse rever ou cassar contratos só porque “não concorda” com os termos assinados décadas atrás…

Uma das iniciativas mais sem sentido que navega sobre as falácias acima é o Projeto de Lei 1272/2024 aprovado em regime de urgência pela Câmara dos Deputados que “prevê a delegação, aos municípios, da atividade complementar de fiscalização” dos serviços de distribuição de energia elétrica. O próprio texto do projeto reconhece que a Lei 9.427/1996 instituiu a Aneel como reguladora e fiscalizadora de toda a cadeia de valor de energia elétrica, mas logo na sequência equivocadamente atropela a competência regulatória federal do setor elétrico ao argumentar que “os municípios são os entes que possuem as melhores condições de avaliar o impacto que a execução indireta [sic] dos serviços possui em seus respetivos territórios”.

Com base em quais dados foi construída essa premissa de que municípios têm as melhores condições para avaliar o impacto dos serviços elétricos? Esse raciocínio, além de ignorar a alta complexidade técnica da atividade de regulação – que exige rituais sofisticados, muita coordenação federativa e quadros profissionais ultra capacitados – não demonstra nenhuma reflexão sobre o caos que seria criado com diferentes critérios e metodologias que os 5.570 municípios brasileiros poderiam querer definir se munidos dessa atribuição. Se a Aneel já tem dificuldade para realizar sua tarefa atualmente, é impossível imaginar o que aconteceria se esse projeto de lei avançasse.

Aliás, de onde viriam os recursos para recrutar, treinar e remunerar os milhares de fiscais municipais? Se o parlamentar que propôs esse projeto realmente quiser ajudar a melhorar o trabalho de fiscalização, seria melhor lutar pelo repasse integral dos recursos que deveriam ser destinados à Aneel, mas que têm sido fortemente contingenciados (retidos) pelo Governo Federal.

É bom lembrar que o Diretor Geral da Aneel, em carta-resposta a acusações do Ministro de Minas e Energia, observou que a agência: (a) opera com déficit de 30% de servidores, uma defasagem de 248 profissionais; e (b) deveria receber mais de R$ 1 bilhão de recursos, mas tem recebido R$ 400 milhões após o contingenciamento.

O reducionismo e o voluntarismo político que assolam o setor elétrico têm proposto soluções fantasiosas que precisam ser expostas e abandonadas. Está na hora de todos se unirem para resolver os problemas do mundo real com soluções do mundo real.

Eduardo Müller Monteiro e Claudio J. D. Sales são Diretor Executivo e Presidente do Instituto Acende Brasil (acendebrasil.com.br)

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