A crise do corte de energia de usinas eólicas e solares
Uma crise no setor elétrico que é conhecida pelo seu termo em inglês precisa de solução regulatória urgente para não se transformar em um problema de grandes proporções. O chamado “curtailment” é o nome dado para o fenômeno que ocorre quando usinas geradoras de eletricidade são forçadas a reduzir a sua produção pelo operador do sistema devido a questões sistêmicas.
Desde o início do segundo semestre de 2023, usinas eólicas e solares no Nordeste do Brasil têm sofrido curtailment em patamares crescentes e que extrapolam em muito os piores prognósticos feitos pelos agentes quando os projetos foram planejados e construídos.
A situação é insustentável: os custos assumidos pelas usinas eólicas e solares de abril a setembro de 2024 já somam mais de um bilhão de reais, ameaçando a viabilidade econômica de alguns empreendimentos e comprometendo investimentos importantes para a transição energética.
De forma simplificada, a regulamentação prevê que o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) pode comandar algumas usinas a “cortar” sua produção (daí o nome “curtailment”) devido a três causas:
(1) “por indisponibilidade externa”, quando o escoamento de energia é prejudicado pela indisponibilidade de instalações de transmissão;
(2) “por confiabilidade elétrica”, quando é preciso atender a requisitos de confiabilidade elétrica para preservar a estabilidade da rede de transmissão; ou
(3) “por razão energética”, quando a geração de energia supera a demanda por energia (ou seja, quando há demanda insuficiente para absorver a geração).
Pelas regras atuais do setor elétrico, o curtailment pode acarretar perdas tanto para os consumidores quanto para os geradores. A parcela alocada aos consumidores é cobrada via encargo tarifário (ESS – Encargo de Serviços do Sistema). Já os geradores assumem a outra parte, que engloba: (a) os custos de aquisição de energia elétrica de outras fontes no mercado de curto prazo para honrar seus compromissos contratuais de suprimento; e (b) a perda de receita derivada do corte de sua produção de energia.
Os legisladores previram há 20 anos (Lei 10.848/2004) alguns mecanismos de ressarcimento das perdas ocasionadas pelo curtailment imposto aos geradores por razões sistêmicas. Os critérios para o ressarcimento previstos na lei foram regulamentados pela Aneel em julho de 2022 na Resolução 1.030/2022 (REN 1.030/2022). A norma prevê que os geradores sejam ressarcidos apenas pelo curtailment “por indisponibilidade externa”, e mesmo assim de maneira limitada. Já os curtailments “por confiabilidade elétrica” e “por razão energética” não são ressarcidos, sendo inteiramente assumidos pelos geradores.
O raciocínio da Aneel na época da regulamentação da matéria foi baseado no conceito de que apenas o “risco extraordinário” – situações de “caráter mais estrutural”, “de longa duração” e que “não seriam comumente contemplados pelo agente de geração em seu plano de negócios” – deve ser ressarcido. Já o “risco ordinário” do negócio deve ser assumido pelo gerador.
Portanto, na visão da Aneel apenas o curtailment “por indisponibilidade externa” prolongada configuraria risco extraordinário, e os demais tipos de corte (“por confiabilidade elétrica” e “por razão energética”) seriam riscos ordinários.
Quando o ressarcimento por curtailment (REN 1.030/2022) foi regulamentado, os cortes eram pequenos (da ordem de 60 MWm, ou 0,6% da geração potencial), mas a partir de agosto de 2023 houve uma mudança na natureza e na magnitude dos cortes. Em setembro de 2024 o curtailment eólico chegou a 2.800 MWm (13,1% da geração eólica), com patamares ainda mais altos para geração solar, sendo que alguns empreendimentos sofreram cortes superiores a 55% de sua produção potencial em alguns meses de 2024.
Dois fatores principais levaram ao agravamento do curtailment: (a) o atraso da entrada em operação de novas linhas de transmissão; e (b) a adoção de uma política operativa mais conservadora pelo ONS a fim de evitar a repetição do apagão de 15 de agosto que resultou em corte de 23 GW que atingiu todo o país.
Este histórico demanda três reflexões para a Aneel e para o ONS:
- Uma parcela do curtailment classificado como “por confiabilidade elétrica” decorre de instabilidades na rede provocadas pelo atraso de novas linhas de transmissão. Logo, não seria mais apropriado classificar este tipo de curtailment por atraso de instalações de transmissão como “por indisponibilidade externa”?
- Outra parcela do curtailment classificado como “por confiabilidade elétrica” foi decorrente da política operativa mais conservadora adotada pelo ONS desde agosto de 2023, que vem reduzindo substancialmente a capacidade de escoamento da rede de transmissão em certas regiões. Dado que nem o ONS vislumbrava essa mudança de política operativa, não seria mais adequado considerá-la como “risco extraordinário” elegível para ressarcimento?
- Parte relevante do problema do curtailment “por razão energética” decorre da inserção massiva de micro e minigeração distribuída (MMGD) fortemente subsidiada, mas a MMGD não tem sido sujeita a cortes. Estes geradores também não deveriam arcar com a sua parcela de contribuição para o problema?
Estamos diante de uma mudança estrutural que tem gerado muito aprendizado – tanto para o ONS quanto para os geradores – e que envolve um risco de “caráter mais estrutural”, “de longa duração” e que “não seria contemplado pelo agente de geração em seu plano de negócios”. Estes são os mesmos termos que a Aneel utiliza para caracterizar o “risco extraordinário” que deve ser ressarcido por encargo tarifário.
As autoridades precisam reconhecer a severidade e urgência do problema e buscar as soluções para esta crise que se avoluma, ameaçando a solvência de empreendimentos existentes e dificultando novos investimentos. O adequado reconhecimento dos riscos extraordinários e seu ressarcimento são imperativos para evitar o agravamento da crise do curtailment.
Claudio Sales, Richard Hochstetler e Eduardo Müller Monteiro são Presidente, Diretor Regulatório e Diretor Executivo do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)