A crise hídrica e o setor elétrico sob estresse ?
08/jul/2021, Valor Econômico
O sistema elétrico passa novamente por uma situação crítica, trazendo à tona traumas de crises anteriores. A possibilidade de desabastecimento de energia causa perplexidade e leva alguns a uma caça às bruxas. Nestes momentos, é importante ter serenidade para não jogarmos o bebê com a água do banho.
Parte da perplexidade geral sobre a situação decorre da grande defasagem entre as ações e suas consequências. Como na agricultura, o suprimento de eletricidade depende de uma série de fatores. Na agricultura, o plantio e cultivo não são garantia de boa safra, pois dependem de fatores não controláveis como o clima. No setor elétrico também é assim: as condições de suprimento de hoje dependem de investimentos realizados anos atrás, de decisões operativas nos meses anteriores, e de fatores exógenos.
As decisões de investimento no setor elétrico precisam ser tomadas sob incerteza quanto à evolução do consumo, do clima, e dos custos de combustíveis. Logo, o planejamento precisa considerar diversos cenários, técnica aplicada por meio do Plano Decenal de Expansão de Energia, a partir do qual se definem a expansão das redes de transmissão e as diretrizes para leilões de novos empreendimentos de geração. Este processo tem levado a uma crescente concorrência que contribui para a minimização dos custos e para a diversificação da matriz elétrica.
No entanto, nunca se elimina o risco por completo. Cabe aos formuladores de políticas públicas definir o nível apropriado de exposição ao risco dado o custo de sua mitigação. Observamos avanços neste sentido no último ano com o estabelecimento de critérios mais refinados de garantia de suprimento (Portaria MME 59/2020).
Examinando-se a situação atual, constata-se que, de fato, a sequência de vazões afluentes desde 2011 já configura um novo “período crítico”, comparável com o enfrentado entre 1948 e 1955. Nestas situações extremas – que são raras – podem ocorrer déficits no suprimento de energia.
Questiona-se se a estiagem verificada nos últimos anos é uma situação episódica ou estrutural. Dadas as mudanças climáticas e as mudanças no uso do solo, alguns creem que se trata de uma mudança estrutural que tornaria obsoletos os modelos probabilísticos baseados no histórico hidrológico. Esta hipótese merece atenção, mas provavelmente só teremos uma resposta definitiva em alguns anos.
Há energia suficiente para suprir o consumo total em 2021, mas a capacidade de atendimento da demanda instantânea, principalmente nos momentos de demanda de pico do dia, está fragilizada. É por isso que as autoridades estão tomando medidas para flexibilizar a operação.
Entre as medidas adotadas, inclui-se a autorização para que o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) possa acionar qualquer usina independentemente da “ordem de despacho” (ordenação de usinas a serem acionadas para atendimento da carga diária) indicada pelos modelos oficiais. Embora esta medida seja indicada no atual contexto, ela é a prova cabal da obsolescência da cadeia de modelos computacionais oficiais (Newave, Decomp e Dessem), pois com essa autorização abre-se mão de um processo de otimização sistemático e previsível. Mesmo com a incorporação de critérios de “aversão ao risco” (por meio da CVaR – Conditional Value at Risk), a operação preconizada pelos modelos oficiais continua proporcionando resultados insatisfatórios.
Estas imperfeições dos modelos acabam prejudicando a operação e a expansão do setor elétrico.
É fundamental aprimorar a forma de se abordar o planejamento e operação. Um dos caminhos é a implementação cuidadosa e planejada do despacho com base em lances de oferta dos geradores em leilões diários – como é feito nos mercados de energia no resto do mundo. Aliás, esta nova forma de definição da ordem de despacho diário daria autonomia aos geradores para a otimização de suas operações com base nos seus próprios modelos computacionais, medida que aceleraria o avanço técnico em área que tem muito espaço para evoluir.
Mas o problema não se deve somente às limitações dos modelos. O fato é que uma parcela crescente da geração não está mais sob controle do ONS: apenas 25% da capacidade instalada no setor elétrico é plenamente controlável, sendo 75% “inflexível” por diversas razões: 1- por serem fontes não controláveis (geração eólica, solar, termelétricas a biomassa e pequenas centrais elétricas); 2- por imposições contratuais no suprimento de combustível de termelétricas (“take-or-pay”); 3- por restrições físicas das hidrelétricas a fio d’água; e 4- por restrições impostas às hidrelétricas com reservatórios de regularização em função de outros usos dos recursos hídricos.
A fim de obter mais flexibilidade de imediato, o governo emitiu a Medida Provisória (MPV) 1.055, que permite, acertadamente, o relaxamento das restrições hídricas impostas às hidrelétricas “em caráter excepcional e temporário”. No entanto, é importante que seja feita o quanto antes uma avaliação mais estrutural do custo-benefício destas restrições hídricas para se determinar até que ponto elas são justificáveis da perspectiva do interesse público.
A MPV 1.055 também autoriza a contratação com “procedimentos competitivos simplificados” que, embora possa amenizar a crise do momento, é o tipo de medida que tende a prejudicar o consumidor nos anos subsequentes.
Também buscando proporcionar maior flexibilidade ao sistema no futuro, instituiu-se este ano a possibilidade de contratação de “reserva de capacidade” (Lei 14.120, originada da MPV 998). No entanto, mesmo antes da realização do primeiro Leilão de Reserva de Capacidade (Portaria MME 518/2021), os parlamentares já desvirtuaram o conceito de “reserva”, impondo, por meio de emendas à MPV 1.031 que trata da desestatização da Eletrobras, a contratação de 8 GW de geração termelétrica inflexível neste novo regime. Esta deturpação do conceito de reserva de capacidade elevará custos e não proverá o tipo de recurso de que o sistema precisa.
É preciso tomar cuidado para que no afã do momento não sejam tomadas medidas que acabam semeando os problemas da próxima safra.
Claudio J. D. Sales e Richard Hochstetler são, respectivamente, Presidente e Diretor de Assuntos Econômicos e Regulatórios do Instituto Acende Brasil.