Abertura do mercado de energia sem paixões
18/mai/2022, Congresso em Foco
A distribuição e comercialização de eletricidade vivem profundas transformações reforçadas por reformas setoriais que vêm alterando a estrutura do mercado de energia. As linhas mestras das reformas em curso começaram a ser formuladas em 2017, na Consulta Pública 33/2017, na qual o Ministério de Minas e Energia (MME) formou um Grupo de Trabalho que apresentou propostas para melhor posicionar o setor elétrico diante de vários desafios futuros.
Além das iniciativas do Poder Executivo, o Legislativo também tem proposto mudanças alinhadas à pauta de Modernização do Setor Elétrico, com destaque para o Projeto de Lei 414/2021, originado do Senado Federal (PL 232/2016) e que agora tramita na Câmara dos Deputados. Esse projeto prevê uma liberalização gradual do mercado de energia que eventualmente permitirá que todos os consumidores escolham o seu fornecedor, fenômeno chamado de ´abertura do mercado varejista´ de eletricidade.
A abertura do mercado varejista foi iniciada na Lei 9.074, de 1995, que permitiu que consumidores com cargas (ou potências demandadas do sistema) superiores a 10 MW pudessem migrar ao Mercado Livre, o que atualmente é chamado de Ambiente de Contratação Livre.
Dando um salto no tempo, o processo atual é regido pelas Portarias do MME 514/2018 e 465/2019, que reduziram a exigência de cargas mínimas para: 2,5 MW a partir de julho de 2019; 2,0 MW a partir de janeiro de 2020; 1,5 MW a partir de janeiro de 2021; 1,0 MW a partir de janeiro de 2022 (patamar atual); e 0,5 MW a partir de janeiro de 2023.
A mesma Portaria do MME 465/2019 determina que: “Até 31 de janeiro de 2022, a Aneel e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE deverão apresentar estudo sobre as medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre para os consumidores com carga inferior a 500 kW…, e proposta de cronograma de abertura iniciando em 1º de janeiro de 2024”. A fim de atender aos requisitos da Portaria MME 465/2019, a Aneel promoveu em 2021 a Tomada de Subsídios 10/2021 para ouvir os agentes sobre o tema.
A abertura do mercado pode apresentar inúmeros benefícios:
> melhorar a gestão sistêmica de risco: um dos benefícios potenciais da liberalização é passar a gestão da contratação da energia para agentes que possam efetuar uma gestão ativa da comercialização de energia, beneficiando consumidores ao minimizar custos e mitigar riscos.
> promover inovação na precificação da energia: como os consumidores não são homogêneos e têm diferentes preferências, a liberalização poderá permitir o surgimento de várias alternativas de contratação para vários nichos de consumidores.
> aumentar o engajamento dos consumidores: a abertura permite que os consumidores sejam mais ativos na contratação de suas necessidades energéticas.
> intensificar a concorrência; com a oferta de novos produtos energéticos (pacotes de serviço), especialmente se houver maior engajamento dos consumidores.
Apesar de seus significativos benefícios potenciais, a abertura de mercado precisa ser implementada com cuidado e por meio de uma regulação que proporcione transparência e segurança a todos os agentes.
Não podemos criar uma nova disputa tóxica entre “agentes pró-abertura” e “agentes contra a abertura”, como vimos em 2020 e 2021 na discussão da legislação que levou à revisão dos subsídios que favoreciam a mini e microgeração distribuída, um verdadeiro “Fla-Flu” que levou a guerras de narrativas nunca antes vistas no setor elétrico e gerou confusão e desgastes desnecessários até chegarmos à Lei 14.300, promulgada em janeiro, que trouxe mais segurança e previsibilidade para o sistema de compensação de energia, regime tarifário que tem sido fundamental para a viabilização da mini e microgeração distribuída.
A abordagem cuidadosa em relação à liberalização é fundamental porque as experiências de abertura do mercado varejista de energia elétrica em outros países (Reino Unido, países nórdicos, Estados Unidos, Austrália e Canadá) demonstram que a livre escolha não é garantia de melhoria para os consumidores como um todo.
As experiências internacionais oferecem lições úteis na implantação da liberalização do mercado no Brasil e um entendimento mais realista quanto a seus benefícios. Uma análise sobre essas experiências é apresentada no nosso estudo “White Paper 27 – Transformações e Inovações na Distribuição e Comercialização de Eletricidade” (www.acendebrasil.com.br/estudos).
O mesmo estudo detalha sete requisitos para uma abertura de mercado exitosa:
> introdução e robustecimento de mecanismos que promovam segurança de mercado;
> separação entre as atividades de distribuição e comercialização de eletricidade;
> tratamento adequado de contratos legados;
> definição mais precisa sobre a comercialização varejista;
> regulamentação do chamado “Supridor de Última Instância”;
> definição da estratégia e de programas de medição digital; e
> delimitação das responsabilidades e regulamentação da atividade de cobrança.
Apesar de a experiência internacional revelar que a abertura do mercado varejista não é a panaceia propagada por alguns agentes – afinal, a liberalização, por si só, não garante mais inovação, mais eficiência e tarifas mais módicas –, a abertura deve ser fomentada com os devidos cuidados para atender aos sete requisitos listados acima.
O arcabouço regulatório de energia elétrica no Brasil apresenta algumas particularidades que têm dado origem a distorções e ineficiências, principalmente em função da rigidez imposta sobre a contratação no Ambiente de Contratação Regulada. Portanto, a liberalização do mercado varejista pode vir a acelerar a resolução destes problemas ao trazer mais flexibilidade e agilidade ao mercado.
Uma implementação cuidadosa, pragmática e sem paixões é o segredo para o êxito da abertura de mercado de energia no Brasil. Como dizia Alfred North Whitehead (matemático e filósofo inglês, 1861-1947): “a arte do progresso consiste em manter a ordem diante da mudança e preservar a mudança em meio à ordem.”
Claudio J. D. Sales, Eduardo Müller Monteiro e Richard Hochstetler são, respectivamente, Presidente, Diretor Executivo e Diretor de Assuntos Econômicos e Regulatórios do Instituto Acende Brasil.