Descontruindo os mitos do Gasoduto Subida da Serra

Data da publicação: 30/11/2023

O projeto do Gasoduto Subida da Serra (GSS) foi desenvolvido pela Comgás, distribuidora local de gás canalizado em São Paulo, cujo controlador é a Compass. Além de menosprezar a autoridade da ANP e desafiar frontalmente os princípios de desverticalização previstos na Nova Lei do Gás, este projeto criou uma conta desnecessária aos usuários finais para construir e permitir a remuneração da Comgás por um ativo redundante em relação a ativos existentes.

O gasoduto foi desenvolvido com volumosos recursos (R$ 473 milhões) incorporados à base tarifária dos consumidores de gás paulista e, apesar das tentativas da Comgás para classificá-lo como gasoduto de distribuição, o GSS é nitidamente um ativo de transporte:

  • tanto por suas especificações técnicas, uma vez que o GSS “tem características operacionais que o assemelham a um gasoduto de transporte, com 31,5 km de extensão em tubos de aço de 20 polegadas, pressão de 70 bar, e capacidade movimentar até 16 milhões de metros cúbicos por dia”, nas palavras da própria Arsesp (agência reguladora estadual de São Paulo), em sua nota técnica NT.F-0030-2019;
  • quanto por sua função, uma vez que é o elo de transporte, e não o elo de distribuição, o responsável pela conexão das fontes de suprimento ao mercado consumidor de gás, função esta desempenhada pelo GSS, que faz uma conexão isolada entre o Terminal de Regaseificação TRSP da Compass, no Porto de Santos, e a malha da Comgás.

A distorção gerada pela Arsesp com a equivocada classificação do GSS como gasoduto de distribuição provocou reações contrárias de várias autoridades federais (como a ANP, o Ministério da Justiça/CADE e o Ministério da Economia/Fazenda). Diante do impasse e do desafio de sua autoridade federal pelo regulador estadual, a ANP abriu a Consulta Pública 10 (CP 10/23) para receber contribuições sobre um acordo entre a ANP e a Arsesp que buscaria eliminar a insegurança jurídica e a situação contenciosa geradas pela Arsesp.

A CP 10/23 recebeu 148 contribuições enviadas por 48 participantes da academia, associações, empresas, consultorias e instituições governamentais. A diversidade de posicionamentos chamou a atenção, sendo que alguns deles poderiam ser classificados como verdadeiros mitos que precisam ser desconstruídos.

O primeiro mito se refere ao papel dos reguladores e à competência da Arsesp frente à ANP: segundo alguns, por ser um ativo integralmente implantado em território paulista, caberia à Arsesp arbitrar decisões sobre o projeto. Esse mito não se sustenta porque:

(a) a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que o transporte de gás natural é monopólio da União (Art. 177);

(b) a Lei do Petróleo (Lei 9.478/97) que criou a ANP também explicitou que o regulador federal é quem deve regular e fiscalizar as atividades de gás natural, com plena autoridade para regular gasodutos de transporte; e

(c) nunca houve qualquer referência legal dizendo que gasodutos de transporte são exclusivamente interestaduais. O Gasoduto Urucu-Manaus, por exemplo, é duto de transporte inteiramente localizado no estado do Amazonas.

A Arsesp nunca teve competência legal para aprovar a implantação ou a classificação do gasoduto. Seria inclusive absurdo atribuir este tipo de poder a uma agência estadual e sujeitar o mercado nacional de gás natural a 27 interpretações diferentes. Elevando o tom, a própria ANP confirmou em reunião de diretoria recente (23/nov/2023) que questionará, junto ao Supremo Tribunal Federal, a constitucionalidade de decretos e leis estaduais que se espalham pelo país e invadem áreas de competência da ANP.

O segundo mito observado nas manifestações da Consulta Pública 10/23 é inspirado na expressão em inglês “too big to fail”, ou “grande demais para dar errado”. Apoiada no Decreto 65.889/2021 do Governo de São Paulo e em decisão da Arsesp, a Compass decidiu ignorar a jurisdição federal que disciplina o transporte de gás natural e apostar que, uma vez construído, ninguém teria “coragem” de contestá-lo, inclusive porque seu custo de quase meio bilhão de reais já foi embutido na tarifa de sua própria distribuidora, a Comgás, em ato explícito de afronta à competência da ANP, isso sem falar na verticalização e concentração de atividades que merecem exame minucioso do CADE.

O terceiro mito propagado na CP 10/23 busca construir a tese de que a reação dos transportadores não passa de uma estratégia para cobrar mais “taxas” dos consumidores, ao contrário da Compass, que estaria “evitando” a necessidade de pagamento de tarifa de transporte com o Gasoduto Subida da Serra. Este mito é uma aberração técnica dupla porque:

(a) o Subida da Serra não “evita custos”, e sim introduz custos adicionais para construir toda uma infraestrutura de suprimento de gás, desde o terminal de regaseificação de GNL até o gasoduto Subida da Serra, com trecho paralelo à rede de transporte existente para atender ao mesmo mercado paulista atual. Um verdadeiro ´bypass´ da rede de transporte pré-existente que está sendo pago pelos consumidores de gás de São Paulo e pelos demais consumidores de outros estados conectados à rede nacional integrada;

(b) não faz sentido falar em taxas adicionais de transporte porque o elo de transporte é remunerado por uma receita regulada definida pelo método de Receita Máxima Permitida, segundo o qual quanto maior a utilização da malha de transporte, menor a tarifa unitária paga pelos consumidores. Portanto, ao diminuir o volume de gás que poderia ser transportado pela rede de transporte pré-existente, o Subida da Serra desotimiza não apenas a lógica funcional, mas também a lógica tarifária do elo de transporte de gás natural.

Estas e outras análises são detalhadas no estudo “O Fenômeno Bypass, a Desintegração do Mercado de Gás Natural e seus Impactos” (disponível em www.acendebrasil.com.br/estudos), cujo objetivo é analisar os impactos do Gasoduto Subida da Serra e contribuir para a Consulta Pública 10/23 da ANP.

A ANP, como autoridade federal, não deve se privar de atuar de maneira firme no desfecho da CP 10/2023, protegendo o modelo desenhado para o mercado de gás natural brasileiro e corrigindo suas distorções. Ela não pode desperdiçar esta oportunidade para desconstruir estes mitos que afrontam sua autoridade de regulador federal, solapam a legislação construída para dar segurança jurídica e clareza para os papeis dos elos da cadeia de valor de gás natural, e repassam para as tarifas dos consumidores de gás quase meio bilhão de reais para construir um gasoduto que duplica uma infraestrutura de transporte que já existia para atender ao mesmo mercado.

Eduardo Müller Monteiro e Claudio Sales são Diretor Executivo e Presidente do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)

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