Eletrobras, jabutis e linguiças
13/mai/2022, Valor Econômico
“Leis são como linguiças. Melhor não ver como são feitas”. (Frase atribuída a Otto von Bismarck sobre o processo legislativo)
É sempre um desafio retórico e lógico falar sobre a Lei 14.182 (promulgada em 12 de julho de 2021) porque esta peça legislativa nasceu a partir do nobre objetivo de privatização da Eletrobras, mas os chamados “jabutis” impostos pelo Poder Legislativo na sua tramitação acabaram ofuscando o seu mérito original.
Está mais do que na hora de acabar com o uso político que vitimou a Eletrobras na forma de: assunção de projetos com taxas de retorno insuficientes; cabide de empregos para apadrinhados na Eletrobras holding e suas subsidiárias; e gestão pouco eficiente e com objetivos mal definidos.
A melhor forma de acabar com o uso político é privatizar a empresa, alvo cobiçadíssimo por políticos, fornecedores e sindicatos. Houve até razão para otimismo quando a desestatização ganhou força em 2016, ano em que foi apontado um executivo respeitado pelo mercado para presidir a empresa.
Mas com o avanço da Medida Provisória 1.031/2021 em maio de 2021 na Câmara, convertida depois como PLV 7/2021 no Senado, escancarou-se a troca política: o governo federal cedeu à pressão de grupos atuantes no Congresso que inseriram três jabutis que escondem três reservas de mercado.
A própria forma do texto final da Lei 14.182 foi vergonhosa. A Lei tem 33 artigos, sendo que o primeiro parágrafo do primeiro artigo é enorme, com nada menos do que 3.970 caracteres, ocupando 45 linhas de uma fonte clássica como Arial 10. Isso ocorreu porque o legislador astutamente colocou no mesmo parágrafo que expõe o objetivo principal (a desestatização) todos os jabutis para inviabilizar o veto aos jabutis, pois vetá-los implicaria vetar a própria privatização. A chantagem ficou óbvia: ou aprovava-se o texto com todos os jabutis, ou nada seria aprovado.
Nossos parlamentares precisam saber que a formulação de políticas do setor elétrico compete ao MME (Ministério de Minas e Energia, conforme Lei 13.844/2019, Art. 41), que conta com o trabalho da EPE (Empresa de Pesquisa Energética, criada pela Lei 10.848/2003). A EPE tem centenas de profissionais que desenvolvem os estudos técnicos para respaldar as políticas energéticas sob responsabilidade do MME.
A atrofia passiva do MME e a hipertrofia agressiva do Congresso em pautas do setor elétrico precisam acabar, pois não faz sentido construir nossa matriz elétrica com base em escolhas intempestivas e sem critério dos legisladores. Aliás, o parlamento não tem profissionais com a qualificação necessária para avaliar as complexas variáveis envolvidas na definição de políticas energéticas.
Como não chamar de jabutis três mecanismos inseridos logo no primeiro parágrafo do primeiro artigo que impõem: 1- a contratação de 8 GW de termelétricas a gás natural, obrigatoriamente no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, em regiões (pasmem) sem gasodutos; 2- a reserva de mercado para pequenas centrais hidrelétricas de 50% da demanda das distribuidoras até se atingir 2 GW; e 3 – a prorrogação por 20 anos de contratos do Proinfa, programa criado em 2002 para incentivar fontes como eólica e solar que já cumpriu sua função e se tornou anacrônico com a competitividade que as fontes eólica e solar têm demonstrado nos últimos anos?
Os três mecanismos acima representam a mais clássica definição de jabutis porque são reservas de mercado explícitas que beneficiam grupos de interesse específicos, sem que haja estudos técnicos que os justifiquem.
É triste ver que alguns especialistas do setor elétrico admirados por sua longa trajetória profissional prefiram justificar os jabutis invocando Salvador Dali ou chamando de “surrealistas” os que os contestam, mas sem mostrar os estudos que embasaram a introdução das reservas de mercado acima durante a tramitação no Congresso. Suas teses, para dizer o mínimo: atropelam o consagrado conceito de que a inserção de fontes deve acontecer com base na modelagem técnica e na concorrência; e ignoram que a localização das termelétricas não faz sentido do ponto de vista elétrico.
Também não vale dizer que os alegados surrealistas são contra termelétricas, pois qualquer técnico iniciante no setor elétrico sabe que termelétricas aportam atributos muito bem-vindos para aumentar a segurança da operação elétrica, especialmente com o aumento da participação de fontes não controláveis como eólica e solar na nossa matriz.
Portanto, “sim” absoluto para termelétricas, desde que elas sejam inseridas a partir de estudos onde sua quantidade, seu porte, seu combustível e sua localização sejam determinados pelo planejamento e pela competição, resultando assim na solução mais econômica e eficiente para os consumidores.
Cerca de 400 parlamentares acabam de apoiar um Projeto de Decreto Legislativo (PDL 94/2022) que “susta” o reajuste tarifário autorizado pela Aneel para a distribuidora de eletricidade do Ceará. Esse ato intervencionista, se levado adiante, representa quebra explícita dos contratos de concessão e deflagra o fim da estabilidade necessária para que o setor elétrico continue a investir dezenas de bilhões de reais ao ano. Também levará ao aumento da conta de luz em função da elevação do custo de capital por causa do aumento de risco político que será incorporado às taxas de financiamento.
A justificativa para o ato demagógico do PDL 94/2022 foi a necessidade de fazer algo porque “os consumidores brasileiros têm arcado com custos de energia elétrica cada vez mais crescentes”.
Metade da conta de luz é composta por tributos, encargos e subsídios, todos legislados pelo Congresso, sendo que os subsídios que beneficiam grupos de pressão foram se avolumando ao longo do tempo a partir de jabutis como os três embutidos na Lei 14.182 de desestatização da Eletrobras.
Se os congressistas estiverem realmente pensando nos consumidores, não é tarde para legislar pela privatização da Eletrobras com a exclusão dos jabutis, revertendo assim esse lamentável episódio de indisciplina técnica e econômica, desrespeito aos papéis da EPE e do MME, e ocupação do Congresso Nacional por grupos de interesse econômico e político que agem em causa própria às custas dos cidadãos brasileiros.
Claudio J. D. Sales e Eduardo Müller Monteiro são, respectivamente, Presidente e Diretor Executivo do Instituto Acende Brasil.