Geração Distribuída e PL 2.703: mais privilégios às custas dos consumidores

Data da publicação: 16/11/2022

16/nov/2022, Broadcast Energia

Um deputado federal eleito por São Paulo que construiu sua imagem ao longo de décadas como defensor dos consumidores acaba de patrocinar uma iniciativa que é um verdadeiro “Robin Hood às avessas”, tirando dinheiro de quem tem menos para prorrogar um privilégio que beneficia investidores que nitidamente não precisam de mais vantagens.

Esse parlamentar, membro da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor na Câmara dos Deputados – e potencialmente induzido a este erro crasso por grupos de pressão que atuam incansavelmente nos gabinetes em Brasília – acaba de propor, em regime de urgência, o projeto de lei (PL) 2.703, cujo objetivo é prorrogar o início de aplicação das novas regras tarifárias que promoveriam uma redução gradual das vantagens para investidores em geração distribuída, vantagens estas que atualmente são pagas por todos os consumidores de eletricidade, as pessoas comuns que não investem em geração distribuída

A geração distribuída de eletricidade é um fenômeno global e irreversível que envolve um conjunto de tecnologias que permitem que a produção de eletricidade, como o próprio nome diz, seja espalhada (ou distribuída) pelas redes elétricas, dando aos chamados prossumidores (produtores + consumidores de eletricidade) a capacidade de ora gerar, ora consumir energia. Esse fenômeno global não é diferente no Brasil, que tem visto uma explosão exponencial dos investimentos em geração distribuída, com aportes bilionários de grandes grupos empresariais.

Esses aportes de bilhões não são coincidência: revelam a alta atratividade e o excelente retorno dos investimentos em geração distribuída, que saltaram de 1 GW em junho de 2019 para a incrível marca de 10 GW de potência instalada em março deste ano.

Este crescimento exponencial em menos de três anos, além de explicitar a alta atratividade do segmento, expôs as crescentes distorções alocativas de um modelo de incentivo concebido em 2012 via Resolução Normativa 482/2012 da Aneel, instrumento que regulamentou o chamado “sistema de compensação de energia” para promover a inserção da mini e microgeração distribuída.

O sistema de compensação de energia foi criado para dar um impulso inicial à geração distribuída que, à época, não seria economicamente viável. Na prática, ele proporciona um forte subsídio implícito em benefício dos que investem em geração distribuída, pois a compensação pela energia injetada na rede pelo mini ou microgerador corresponde à tarifa total de fornecimento de eletricidade, que inclui não apenas os custos de geração, mas também os custos de transmissão, distribuição, encargos e tributos – que são, na maior parte, custos fixos que não são reduzidos com a inserção de geração distribuída e, portanto, precisam ser honrados pelo conjunto de consumidores conectados às distribuidoras.

Traduzindo do “eletriquês para o português”: o consumidor que adere ao sistema de compensação esquiva-se de parte dos custos dos serviços das redes elétricas dos quais desfruta, deixando para os consumidores que não têm geração distribuída o pagamento desses custos em suas contas de luz. Esta parte da história não é contada aos parlamentares, especialmente aos que ainda não perceberam que consumidores de menor renda estão subsidiando este mecanismo.

Com base nas verdadeiras campanhas de Fake News que assistimos durante dois anos – cuja pérola mais absurda foi a falaciosa “taxação do Sol” –, precisamos dar o benefício da dúvida ao deputado que propôs o PL 2.703 e aos seus colegas que o acompanharam. Eles provavelmente não se deram conta de que a prorrogação do prazo para manutenção das vantagens para investidores em geração distribuída implicará aumento das tarifas para os demais consumidores.

As recentes análises emanadas do Congresso Nacional envolvendo comandos legais que afetam o setor elétrico brasileiro têm sido tecnicamente superficiais e se constituído em uma afronta aos longos e sérios estudos técnicos desenvolvidos pelas autoridades que planejam, operam e regulam o mesmo setor elétrico.

Portanto, é razoável supor que nossos congressistas provavelmente não devem se lembrar de que eles mesmos acabaram de definir, por meio da Lei 14.300 promulgada em 6 de janeiro de 2022: (a) a manutenção dos benefícios integrais até 2045 para os prossumidores que já fizeram suas instalações; e (b) uma transição super suave que diminui os subsídios tarifários para os consumidores que optarem por investir em geração distribuída nos próximos anos. Isso reduziria os incentivos para aumentar os sobrecustos crescentes de novas conexões a serem arcados pelos consumidores comuns para subsidiar os prossumidores. Não há milagre: se uns estão pagando menos, outros estão pagando mais.

O PL 2.703 agora proposto defende a ampliação em 12 meses dos descontos tarifários para geração distribuída em relação aos prazos definidos na recém-promulgada Lei 14.300 com base na alegação de que as distribuidoras não estão cumprindo prazos para conexões. Este argumento não se sustenta: segundo dados oficiais da Aneel, nos últimos 12 meses as reclamações desta natureza representaram menos de 0,2% do total de usuários de Geração Distribuída.

Na prática estamos assistindo a uma verdadeira “corrida do ouro” para aproveitar os benefícios tarifários integrais para a geração distribuída que, pela Lei 14.300, começariam a ser reduzidos – ao suave ritmo de 15% ao ano – a partir de janeiro de 2023. Diante da proximidade da data, os lobistas de geração distribuída buscam, via PL 2.703, empurrar tais benefícios integrais até janeiro de 2024 jogando a culpa nas distribuidoras.

Estamos falando de um jogo pesado e perverso de transferência de renda. Também de acordo com dados oficiais da Aneel com base nos prazos vigentes da Lei 14.300, o custo do subsídio para incentivar a geração distribuída saltará 35% em um ano: de R$ 4 bilhões em 2022 para R$ 5,4 bilhões em 2023, e deverá continuar crescendo até 2030. Se o PL 2.703 for aprovado este valor aumentará ainda mais.

A Aneel tem alertado sobre este efeito, classificando o atual subsídio como um “componente perverso” da tarifa porque “vai aumentar de forma rápida”, com peso para os consumidores de menor poder aquisitivo.

Mas não basta que a Aneel faça seu papel, por mais competente que seja seu esforço de comunicação. É preciso que o Congresso Nacional pare de promover intervenções que desestruturam a intrincada lógica técnica e econômica arduamente construída pelo setor elétrico.

A ampliação dos privilégios é tão gritante que representantes de investidores em geração distribuída anunciaram que pretendem abordar o presidente eleito Lula na COP 27 para fazer lobby pela aprovação do PL 2.703. Pois é… Eles podem se dar ao luxo de pagar passagens internacionais para o Egito e fazer lobby junto a políticos, enquanto os consumidores mais modestos brasileiros, com seus orçamentos apertados, nem sabem que correm o risco de pagar essa conta.

O PL 2.703 não pode avançar no Congresso Nacional porque ele representa uma aberração legislativa que prorroga subsídios que já são altos e nocivamente regressivos: quem tem menos recursos pagará ainda mais caro do que tem mais recursos.

O diretor geral da Aneel recentemente relembrou que “a tarifa [de eletricidade] não é uma causa, é uma consequência das escolhas que são feitas”. Nossos parlamentares precisam demonstrar, por meio de suas escolhas de políticas públicas, qual parcela da população eles representam.

Claudio Sales, Eduardo Müller Monteiro, Alexandre Uhlig e Richard Hochstetler são, respectivamente, Presidente, Diretor Executivo, Diretor de Assuntos Socioambientais e Sustentabilidade e Diretor de Assuntos Econômicos e Regulatórios do Instituto Acende Brasil. 

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