Crise hídrica e de energia — o que o Brasil pode fazer para evitar novos “choques” na era das mudanças climáticas
12/jul/2021, Um Só Planeta – Editora Globo
Há exatos 60 anos, o cosmonauta russo Yuri Gagarin eternizou: “A Terra é azul. Como é maravilhosa, ela é incrível!”. A abundância de água no nosso Planeta, que hipnotizou o primeiro homem a ir para o espaço, é a base de toda vida vegetal e animal por aqui. Mas o recurso também tem sua dose de fatalidade. Pelos cálculos da ONU, quase três quartos de todos os desastres naturais entre 2001 e 2018 foram relacionados à água — seja por excesso ou pela falta dela.
A água é o principal meio através do qual as mudanças climáticas influenciam os ecossistemas, modo de vida e bem-estar das sociedades. Em ascensão em todo o mundo, enchentes, secas, incêndios florestais e furacões expõem milhões de pessoas ao risco de fome, doenças, pobreza — e à falta de energia, como a que novamente assombra o Brasil, vinte anos após a crise do apagão que levou o governo a tomar medidas de racionamento.
Atravessamos um cenário hidrológico crítico, com as menores vazões desde 1930. Os principais reservatórios, situados nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, registravam armazenamento médio de 28,3% no dia 7 de julho. O nível acende um sinal de alerta, visto que a água armazenada precisará ser utilizada tanto para a geração de energia quanto pelos demais setores usuários. Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o problema deve se agravar até novembro, quando recomeça o período chuvoso.
Não chegamos neste limiar crítico sem aviso. Registros da EPE indicam que as chuvas nos reservatórios do subsistema Sudeste e Centro-Oeste — responsável pela geração de cerca de 70% da energia consumida no País — e no subsistema Nordeste — que cobre quase 18% da demanda energética — ficaram abaixo da média histórica repetidamente nos últimos sete anos.
Entre as medidas para conter o déficit de oferta e afastar o risco de um racionamento, o governo decidiu acionar, em caráter emergencial, usinas termelétricas movidas a combustíveis fósseis. A medida deve pesar até R$ 9 bilhões no bolso dos consumidores, o que representa um aumento adicional de 5% no custo da energia. E também deverá impactar o saldo de emissões de gases de efeito estufa associados ao setor elétrico brasileiro.
Ainda que o governo consiga evitar um racionamento, em um mundo que já sofre com os efeitos das mudanças climáticas, o risco de novos choques hidroenergéticos se intensifica. Precisamos nos preparar. Um Só Planeta conversou com especialistas para entender como o País pode evitar cenários extremos e atingir maior segurança hídrica e energética de forma sustentável. Afinal, o norte é um só — a transição para um mundo de baixo carbono.
Mix de energia mais diverso e resiliente
Uma das lições da crise de 2001 foi sobre a importância de diversificar a matriz energética para aumentar a resiliência do sistema e sua segurança. Naquela época, mais de 90% da energia elétrica no país era produzida por usinas hidrelétricas, que necessitam de chuva para manter o nível adequado de seus reservatórios para a geração de energia. Essa participação caiu para pouco mais de 60%, atualmente, diante do aumento da participação de outras fontes, como as energias renováveis.
“Quanto mais diversificada a matriz, melhor. E para o Brasil, isso não é tão desafiador. Enquanto o mundo faz um esforço grande para limpar sua matriz, nós temos uma posição privilegiada por nossos recursos renováveis. Hoje, a energia eólica é a segunda fonte de geração, com cerca de 11% de participação na matriz, ante 2% em 2012”, afirma Elbia Gannoum, presidente-executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica).
Ela lembra o papel de complementaridade entre as fontes. O tempo mais seco e menos chuvoso coincide com a melhor “safra” dos ventos. “De setembro a outubro, que é o período mais crítico de abastecimento de energia no país, a eólica vai alcançar 20% da demanda de energia nacional, uma prova de como contribuímos para a segurança do abastecimento”, pontua.
Para Elbia, essa diversificação deverá se intensificar não apenas pelo ganho de competitividade das renováveis, mas dado o “esgotamento” do modelo hidroelétrico nos últimos anos. “O potencial elétrico das usinas está mais caro e em regiões de difícil acesso com restrições socioambientais [como a Bacia Amazônica]”, ressalta. E os bons ventos sopram a favor, com o crescente interesse do mercado: a eólica é a fonte que mais vai crescer nesta década, saltando de 19 gigawatts (GW) em 2021 para 30 GW em 2030, segundo Elbia.
De acordo com Guilherme Susteras, coordenador do grupo de trabalho de geração distribuída da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), a maior participação da energia solar e também eólica na matriz ajuda o país poupar água dos reservatórios das hidrelétricas e transitar para um mundo baixo carbono. “Se tivermos geração solar espalhada por todo o Brasil, ganhamos em complementação geográfica, o que diminui a intermitência das renováveis e aumenta a segurança energética sem perder de vista as ambições climáticas do país”, defende.
Outra vantagem, segundo o especialista, é agilidade na implementação de painéis fotovoltaicos. Por sua característica modular, a fonte solar pode entregar energia de forma rápida. “Em questão de semanas, é possível colocar muitos quilowatts no sistema. Outras fontes demoram de três a seis anos para começar a entregar a energia, entre a construção e operação”, explica.
Guilherme destaca que a maior barreira para a expansão da geração distribuída no país atualmente é a insegurança jurídica. Em 2019, A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) propôs uma taxação da energia solar em mais de 50%. O debate tem gerado polêmica e discussões entre os diversos agentes da sociedade. “Do ponto de vista de financiamento, já temos bancos privados e fintechs viabilizando a fonte, e do ponto de vista de tecnologias o processo está dominado, a cadeia de suprimentos está preparada. Com previsibilidade, segurança jurídica e um direcionamento claro do governo é possível destravar esse mercado”, avalia.
Fortificar a natureza e zerar o desmatamento na Amazônia
Ao longo do século passado, grandes obras de infraestrutura hidráulica foram a solução adotada para suprir as necessidades de água dos centros urbanos e atividades industriais e agrícolas que cresciam a todo vapor. Mas reservatórios e canais de irrigação não são os únicos instrumentos à disposição. Em oposição à infraestrutura tradicional “cinza” das obras hidráulicas, as chamadas soluções baseadas na natureza (SBN) são aliadas da preservação e reprodução das funções dos ecossistemas e podem ajudar a evitar futuras crises hidroenergéticas.
Neste caso, investir em “infraestrutura verde” significa expandir a vegetação em pastagens, proteger e fortificar zonas úmidas (lagos, manguezais e pântanos que filtram descargas industriais, agrícolas e da mineração) além de restaurar florestas e bacias hidrográficas — medidas que melhoram a quantidade e a qualidade da água disponível.
“Desde o inicio da década de 1990, apenas nas bacias da região sudeste e centro-oeste, que concentram 70% da geração de energia do sistema hidrelétrico brasileiro, o Brasil perdeu mais de 22 mil quilômetros quadrados de florestas, o equivalente ao tamanho de 14 cidades de São Paulo”, destaca Samuel Barreto gerente nacional de Água da TNC Brasil.
As florestas têm um papel muito importante na saúde das bacias hidrográficas. Elas ajudam, por exemplo, a infiltrar água da chuva no solo, garantindo a recarga do lençol freático, que funciona como um reservatório subterrâneo, e impedem a erosão e o assoreamento de rios e bacias.
Em se tratando da maior floresta tropical do mundo, os serviços ecossistêmicos são sentidos por todo o país, daí a urgência de zerar o desmatamento da Amazônia. “A perda de floresta impacta negativamente o regime de chuvas e intensifica os efeitos do aquecimento global. Ela presta um serviço ecossistêmico fundamental no fluxo de umidade e, por consequência, no clima do Brasil”, acrescenta o especialista.
Ele destaca que há uma série de projetos de pequenas centrais hidrelétricas previstas para o Cerrado e Amazônia projetados com dados de séries históricas que não estão se repetindo. “Há o risco de implementar, por exemplo, uma obra de barragem de grande dimensão e impacto na floresta, que talvez não traga o resultado desejado porque aquela oferta potencial que existia pode não estar disponível mais”, adverte.
Segundo Samuel, ainda é cedo para dizer que o padrão de precipitação está mudando, mas o que os especialistas têm percebido é que a distribuição da chuva tem se alterado bastante e que se isso se tornar consistente afetará diretamente os investimentos hidroelétricos. “Temos uma crença de que a engenharia sempre vai dar conta do recado e resolver nossos problemas de escassez, mas na prática isso não é real”, pondera.
O especialista destaca ainda lacunas na governança e na gestão. “A tendência de queda na precipitação e nos níveis dos reservatórios já vem sido observada há tempos, mas as medidas parecem sempre ser tomadas de forma tardia. Nós precisamos discutir medidas estruturantes de médio e longo prazo”. Na lista, entram a já citada diversificação da matriz energética, investimentos em programa de eficiência energética e também soluções baseadas na natureza.
Além disso, há todo um papel de transparência com os diversos atores envolvidos, incluindo aí a própria sociedade. “Meu sonho é que possamos ter um painel hídrico que mostre para a população o status dos reservatórios, as condições das bacias hidrográficas como um todo, e outras informações importantes disponibilizadas de forma acessível e que possam pautar de forma mais estratégica as decisões”, acrescenta.
Sancionada em 1997, a Lei das Águas (Lei núm.9.433), que estabeleceu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), tem como fundamento a compreensão de que a água é um bem público, sendo sua gestão baseada em usos múltiplos — abastecimento, energia, irrigação, indústria, uso doméstico, etc.. — e descentralizada, com participação de usuários da sociedade civil e do governo. A descentralização implica uma participação ativa da sociedade nas decisões. Sem informação e referências confiáveis, o controle social é enfraquecido, comprometendo a boa governança da água.
Eficiência Energética: potencial pouco explorado
Otimizar o aproveitamento da energia para reduzir custos e ajudar o meio ambiente é chave no roadmap contra crises futuras. A eficiência energética pode ser uma aliada para o Brasil crescer sem a necessidade de altos investimentos em represas ou na operação de termelétricas poluentes. E há muito a melhorar por aqui. O Brasil aparece em 20º lugar em ranking global de eficiência energética publicado pelo Conselho Americano para uma Economia Energeticamente Eficiente (ACEEE na sigla em inglês), que analisa as políticas e o desempenho dos 25 países que mais consomem energia.
“Temos potencial de economia de energia na indústria brasileira da ordem de R$ 4 bilhões por ano. Isso representa três vezes a produção da maior usina de carvão do país, a Pecém I no Pará, ou 18% da geração da usina hidrelétrica de Itaipu. Já no setor comercial, o potencial é de R$ 2,4 bilhões, ou 17% de uma [usina] Belo Monte”, diz Frederico Araújo, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Conservação de Energia (Abesco).
O setor industrial é responsável pelo consumo de 41% da energia elétrica do Brasil e, segundo Frederico, cerca de 67% da demanda setorial deve-se aos motores elétricos industriais. “Dos 20,5 milhões de equipamentos em operação, 11 milhões, ou seja mais da metade, possuem 19 anos de idade, são ineficientes ao extremo”, observa o especialista, ressaltando que a modernização de motores se paga em menos de dois anos.
Em termos de sustentabilidade ambiental, os números impressionam. Pelos cálculos da ONU, ao adotar a eficiência energética, a sociedade e as empresas podem evitar que 1,2 bilhão de toneladas de CO2 sejam lançados na atmosfera todos os anos, e ainda poupar 500 bilhões de dólares em gastos com geração. Para disseminar a adoção de sistemas mais eficientes no Brasil, a Abesco tem pleiteado junto à Aneel e ao ministério de Minas e Energia a criação de uma Política Nacional de Eficiência Energética.
“Eficiência, no final, é reduzir desperdício, e isso impacta positivamente toda a cadeia de energia. Quando faço mais com menos, reduzo a pressão sobre a geração elétrica. Dentro das práticas ESG, a eficiência está totalmente ligada ao aspecto ambiental”, destaca Frederico. E o mundo está atento. Ele ressalta investimentos recentes que os EUA fizeram para gerar 400 mil empregos em eficiência energética, e os planos do governo do Reino Unido para dobrar, até 2030, a eficiência energética de motores elétricos, iluminação e equipamentos condicionadores de ar.
Modernização operacional
As condições de suprimento de energia de hoje refletem as decisões e investimentos realizados anos atrás, mas também dependem das decisões tomadas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e de fatores externos não controláveis, como o humor do clima.
“Isso significa que ao se planejar a oferta de energia para atender uma determinada expectativa de demanda, não temos segurança absoluta quanto ao clima. Por definição, incorpora-se um determinado nível de risco no planejamento energético”, observa Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, centro de estudos que desenvolve ações e projetos para aumentar a transparência e a sustentabilidade do setor elétrico.
Como os demais especialistas, ele destaca que quanto mais diversificada a matriz, melhor e que, por fins de segurança, ainda precisamos de termelétricas para serem acionadas em momentos de necessidade. Por isso, observa, é importante que elas sejam flexíveis, que o operador possa ligar e desligar rapidamente as usinas conforme a necessidade do sistema.
Com mais de 20 anos de atuação no setor, Claudio destaca que é fundamental aprimorar a forma de se abordar a operação. Segundo ele, os modelos computacionais oficiais estão obsoletos, o que prejudica a operação e a expansão do setor elétrico.
O especialista defende a implementação do despacho com base em lances de oferta dos geradores em leilões diários. “Nós temos que evoluir para uma nova arquitetura de mercado em que o despacho seja feito com lance de oferta de preço dos geradores, como é feito nos mercados de energia no resto do mundo”, diz.
Para o consumidor, o resultado disso é uma maior eficiência e menor custo, garante o presidente do Instituto Acende. “O despacho de geração será definido a partir de uma competição verdadeira, mais otimizada e que reflita positivamente na conta de luz”.