Em busca de um equilíbrio
Com a corrida ao pote de ouro dos subsídios às fontes renováveis, é preciso equilibrar os valores cobrados à abundância da produção
Um dos inúmeros paradoxos do Brasil é o fato de o país produzir energia elétrica em abundância e com baixo impacto ambiental, mas ostentar uma das contas de luz mais altas do mundo em proporção à renda da população e ainda por cima não estar livre de enfrentar episódios de desabastecimento. Sofrem com isso tanto os consumidores residenciais quanto os empresariais, que perdem competitividade ao embutir o custo da energia no valor dos produtos. Sofrem, também, geradoras, transmissoras e distribuidoras de energia com a sobreoferta e os preços cada vez mais baixos para a venda da eletricidade no médio e longo prazo, de um lado, e com picos de demanda e preços de curto prazo muito altos em determinados dias e horários, do outro. Esse é, resumidamente, o retrato de um setor em estado de desequilíbrio, com impactos nocivos para os negócios e para a economia do país.
Há muitas explicações para as distorções existentes no setor elétrico. A mais citada — que para especialistas deveria ser o ponto de partida de qualquer política pública que procurasse colocar a casa em ordem — é a do excesso de subsídios, que encarece a conta de luz e estimula investimentos irracionais do ponto de vista do mercado, resultando em competição sem isonomia entre diferentes fontes de geração.
Segundo cálculo da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), os encargos para custear os subsídios representam mais de 13% da tarifa residencial de eletricidade. Se somados a isso os impostos, chega-se a quase metade da conta de luz. O custo da energia efetivamente usada representa só 30% e o restante, cerca de 20%, é para pagar os serviços de transmissão e distribuição. “No caso da indústria, pode-se compensar o imposto ao longo da cadeia produtiva, mas não é possível fazer o mesmo com os encargos, que são cumulativos e acabam pesando muito no preço do produto final”, afirma Paulo Pedrosa, presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace).
Os encargos que atualmente mais pesam na tarifa são os que servem para bancar o desconto no “uso do fio” de transmissão concedido a fontes renováveis, como solar e eólica, e os que compensam os benefícios e isenções tarifárias conferidos à geração distribuída (GD), setor que inclui principalmente as residências com painéis solares no telhado. Na sequência vem a Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), que paga pela geração de energia em termelétricas. Também compõem os encargos o custo de políticas públicas como investimentos na universalização da eletricidade e a tarifa social, que dá desconto aos mais pobres.
Nos subsídios à GD, por exemplo, que representam 27% dos encargos na conta de luz, percebe-se que os incentivos dados aos clientes abastados, justamente os que têm recursos para instalar painéis solares em casa, acabam sendo pagos por todos os consumidores, grandes ou pequenos, empresariais ou residenciais, que não desfrutam de isenções. “Como resultado, quanto maior a migração para a geração distribuída, mais cara fica a conta para quem não migrou e continua pagando pelo benefício que outros usufruem”, diz Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, centro de estudos sobre o setor elétrico.
Desde o ano passado, uma nova regra estipulou uma lenta redução do subsídio à GD, com novas instalações pagando gradualmente mais pelo uso da rede até chegar à cobrança integral, em 2029. Já o incentivo a novos parques eólicos e solares foi recentemente renovado pelo governo Lula . Consequência: os investimentos não param. Junho marcou a inauguração de dois parques solares no Nordeste com investimento de 2 bilhões de reais da Spic, empresa chinesa líder mundial nessa fonte de energia. Em maio, a geração distribuída atingiu 30 gigawatts de capacidade instalada, superando as previsões mais otimistas de dez anos atrás — e a estimativa para o próximo decênio é mais que dobrar essa marca. Em contraste, o último grande investimento em hidrelétrica foi na Usina de Belo Monte, concluída em 2019.
Os subsídios para as novas fontes renováveis, seja em grande ou pequena escala, levaram a uma verdadeira corrida do ouro que fez a participação das energias solar e eólica na matriz elétrica brasileira crescer muito nos últimos vinte anos. Hoje representam, juntas, mais de 30% da geração no país. Por um lado, isso ajudou a manter a matriz como uma das mais limpas do mundo, complementando a geração hidrelétrica com fontes que desempenham melhor em períodos mais secos ou com mais vento. Por outro, elevou a capacidade de geração elétrica muito além da demanda ( veja o gráfico ), com impacto no preço e no estímulo a investimentos nas outras fontes, e aumentou a chamada “variabilidade do sistema”.
Isso significa que, em determinados dias e horários em que a geração solar e eólica está elevada, as hidrelétricas operam bem abaixo da capacidade, “desperdiçando” água sem acionar as turbinas. Em outros, quando as novas fontes renováveis estão produzindo menos e a demanda está alta (no início da noite, por exemplo), é necessário ligar as termelétricas, mais poluidoras e mais caras — situação mais frequente em períodos de pouca chuva, quando as hidrelétricas são afetadas. É o que explica a decisão da Aneel de estabelecer bandeira amarela para as tarifas em julho, aumentando a conta de luz para os consumidores apesar de um contexto geral de sobreoferta de energia. “Esta é uma das nossas preocupações constantes: a expansão de fontes com muita variabilidade, como a solar e a eólica, exige novos investimentos em hidrelétricas para dar segurança ao sistema, mas isso só é possível com a retirada dos subsídios que interferem na competitividade entre as fontes”, diz Marisete Pereira, presidente da Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica (Abrage).
No dia 12 de julho, o Ministério de Minas e Energia e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) organizaram em São Paulo um seminário com a participação dos principais representantes do setor para discutir políticas capazes de corrigir as distorções no sistema elétrico. O ministro Alexandre Silveira disse, na ocasião, que o setor, se não for repensado, “caminha para a insustentabilidade”. O problema é que, como observou um dos palestrantes, os discursos do governo, dos consumidores e da maioria das empresas vai no caminho correto, enquanto as leis e regras aprovadas vão na direção contrária. Foi uma referência a medidas provisórias do governo e a excentricidades legislativas que, nos últimos meses, geraram novos encargos ou criaram reserva de mercado para certas empresas, acentuando as distorções.
Apesar de tudo, o setor está otimista. “O governo vem sinalizando a vontade de apresentar um projeto de lei que trata da portabilidade da conta de luz a todos os consumidores, de medidas para a redução das tarifas e do equacionamento de alguns subsídios setoriais, beneficiando o consumidor de energia. Seria o projeto da justiça tarifária e liberdade do consumidor”, diz Luiz Barroso, presidente da consultoria PSR. O Brasil reúne as condições para propiciar energia elétrica limpa, segura e barata para todos. Basta arrumar a casa e não ceder aos interesses de poucos em detrimento de muitos.
“O foco deveria ser a eletrificação”
Para o presidente da Engie, a maior geradora renovável do país, a vantagem da energia elétrica limpa tem de ser aproveitada na frota e na indústria brasileira
Sattamini, da Engie: “Há um Robin Hood às avessas no setor”
A Engie Brasil Energia, do grupo francês Engie, é a empresa líder em energia renovável no Brasil, tendo investido 22 bilhões de reais entre 2016 e 2023 em ativos de geração e transmissão. Até 2026, pretende investir outros 14 bilhões de reais em projetos eólicos e solares, que totalizam 1,5 GW de capacidade instalada, além de construir 1 000 quilômetros de linhas de transmissão. Eduardo Sattamini, presidente da companhia, vê com preocupação o cenário de desequilíbrio entre oferta e demanda no setor. Ele concedeu a seguinte entrevista a VEJA NEGÓCIOS:
Qual foi o maior desafio que o senhor já enfrentou à frente da Engie Brasil Energia? Em 24 anos de trabalho na Engie, o momento atual de excesso de oferta de energia e preços baixos é justamente o mais desafiador. Trata-se de um momento de extremo estresse, que vem de uma dificuldade de organização do setor. Precisamos reestruturá-lo.
De que forma esse desequilíbrio setorial impacta nos resultados da empresa? Temos um portfólio com contratos de longo prazo no mercado regulado, mais ou menos 35% a 40% da capacidade, sendo os outros 60% a 65% no mercado livre. Mesmo no mercado livre, procuramos ter um nível de contratação grande nos próximos dois, três anos. À medida que esses contratos vão vencendo, somos obrigados a renovar ou acertar com novos clientes a preços no nível do mercado, ou seja, o nosso preço médio vai caindo gradualmente.
Há chance de essa situação melhorar? A nossa expectativa é que o governo perceba que está causando um dano ao mercado, um desestímulo ao investimento, ao privilegiar fontes de energia subsidiadas. Isso é uma má alocação de recursos da economia. Você paga por uma energia abundante e desnecessária e investe nela recursos que poderiam ir para a saúde ou para outro tipo de infraestrutura mais carente. E são os consumidores que estão pagando caro por esses subsídios para as fontes renováveis e para a geração distribuída, que é realmente um Robin Hood às avessas.
Qual o futuro da transição energética no Brasil? Nós já somos um dos campeões de energia renovável do mundo, pois temos uma matriz de geração elétrica muito limpa. O foco deveria estar na eletrificação, com os incentivos adequados. O governo pode apoiar a eletrificação da frota de ônibus e da indústria durante dez anos. A indústria se desenvolve, a infraestrutura fica adequada. É um subsídio que funciona, pois você estabelece um começo, um meio e um fim para ele.