Formação de preço por oferta divide opiniões
Para os agentes, decisão precisa ser tomada com muita cautela para não comprometer o funcionamento do setor elétrico e do mercado livre de energia.
Nos bastidores do setor elétrico brasileiro, uma discussão intensa vem ganhando espaço nos últimos anos, envolvendo a formação do preço spot de energia. Há um consenso entre os agentes que o PLD (Preço de Liquidação das Diferenças), baseado em custos e determinado por programas de computadores, não reflete com precisão a realidade do mercado, o que pode afetar os investimentos no setor.
A alternativa a esse modelo seria o preço por oferta, utilizado principalmente na Europa e nos Estados Unidos, mas que enfrenta resistências por parte dos agentes brasileiros, especialmente das comercializadoras de energia. A preocupação é legítima, pois os riscos da implementação desse novo modelo no Brasil não são totalmente conhecidos, mesmo após mais de 20 anos de discussão.
As primeiras discussões surgiram ainda no programa de revitalização do setor elétrico em 2002, após o racionamento de energia. “Em vários momentos já se discutiu seriamente o preço por oferta. Já teve até resolução da ANEEL que previa a prática para 2005. Veio a Lei 10.848, de 2004, e enterrou a ideia”, disse Edvaldo Santana, diretor executivo da NEAL (Negócios de Energia Associados) e ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica.
Em julho de 2017, durante o governo de Michel Temer, o MME (Ministério de Minas e Energia), então liderado pelo deputado Fernando Bezerra, lançou a Consulta Pública nº 33, cujo objetivo era o aprimoramento do marco legal do setor elétrico brasileiro. Mais uma vez, a questão do preço por oferta voltou ao centro dos debates.
Em maio do ano passado, a CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) firmou um contrato de 30 meses com a consultoria PSR, com o apoio de empresas e especialistas nacionais e internacionais, para o desenvolvimento de um estudo sobre Formação de Preço de Energia Elétrica de Curto Prazo: uma Análise do Mercado Brasileiro. A iniciativa da CCEE tem o apoio do BIRD (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento) e do MME.
Para Santana, integrante do estudo da CCEE, as barreiras para implementação do preço por oferta são políticas e ideológicas, mas também acomodação por parte dos agentes. “É mais cômodo o “guarda-chuva” do governo. Qualquer coisa, basta repassar a conta para o consumidor, como no caso do risco hidrológico. A coisa é tão estranha que o principal ator e incentivador do mercado livre (as comercializadoras ) não gosta do preço livre.”
Rodrigo Ferreira, presidente da ABRACEEL (Associação Brasileira de Comercializadores de Energia), disse que a busca por aprimoramento dos preços no Brasil é uma das bandeiras da entidade, de forma a melhorar a sinalização econômica e a eficiência do setor. Porém, o executivo entende que uma mudança estrutural como essa deve ser muito bem justificada e precedida de ampla previsibilidade dos agentes.
“Na visão da associação, preço por oferta é algo que precisa ser mais bem estudado para sua aplicação no Brasil, o que está sendo feito atualmente pela CCEE e um pool de consultorias. É preciso identificar bem quais são os benefícios para o mercado como um todo, em especial para os consumidores, e como lidar com certos riscos inerentes ao nosso mercado, como expressiva concentração de geração em poucos players do mercado; hidrelétricas em cascata e até mesmo concentração de geração em regiões geográficas e submercados. Estamos mais preocupados e dedicados agora em melhorar o processo de formação de preço por custo”, declarou Ferreira por meio de nota.
Gabriel Cunha, head de Estudos Internacionais da PSR, traz uma perspectiva mais técnica sobre o projeto em andamento com a CCEE para reformular a formação de preço spot no Brasil. Ele explora a diferença entre o modelo atual, baseado em custos, e o modelo por oferta, que descentralizaria as decisões, permitindo que cada agente do mercado contribua com sua própria avaliação.
Cunha destaca que países como Estados Unidos e Europa já adotam modelos por oferta, que proporcionam uma maior flexibilidade e agilidade na resposta às flutuações do mercado.
“O preço spot é um grande drive usado por todos do mercado livre. O consumidor pode contratar sem olhar o preço spot, mas as comercializadoras consideram o PLD na hora de montar as estratégias de compra de energia. Analisando as experiências internacionais, acreditamos que vai ter impactos no mercado livre e deveria ter impacto no mercado regulado”, disse Cunha. No entanto, ele ressalta a importância de adaptar esses modelos à realidade brasileira, considerando questões como as complexas cadeias hidrelétricas com múltiplos proprietários. Mudanças significativas nesse aspecto poderiam influenciar as estratégias de contratação das empresas e, consequentemente, os custos repassados aos consumidores.
Apesar das potenciais vantagens do modelo por oferta, como uma maior eficiência e transparência, há desafios a serem enfrentados, incluindo o custo de transição e a preocupação com o poder de mercado. Por isso, é essencial que qualquer mudança seja cuidadosamente planejada e avaliada, levando em consideração o impacto em todos os envolvidos no setor elétrico brasileiro.
Como é formado o preço spot de energia no Brasil
O Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) é calculado diariamente, considerando uma série de variáveis cruciais, tais como o consumo de energia, o nível dos reservatórios das hidrelétricas (o fator mais significativo), a disponibilidade do sistema de transmissão e as previsões meteorológicas de chuvas, entre outros. Esses dados são inseridos em um modelo computacional para determinar o valor do PLD para cada hora do dia seguinte.
O PLD representa o custo imediato da energia, sendo essencial para a precificação dos contratos no mercado livre e para liquidar as diferenças no MCP (Mercado de Curto Prazo).
Além disso, serve como referência para decisões de investimentos em novas usinas. Por exemplo, se um projeto de geração tem um custo total (CAPEX + OPEX) de R$ 150,00 por megawatt-hora (MWh), mas o PLD para os próximos 10 anos é estimado em R$ 80/MWh, o investimento tornar-se inviável.
No modelo de formação de preço por custo, o Operador Nacional do Sistema (ONS) acredita poder representar com alta precisão as preferências técnicas do sistema e as características dos agentes.
Por outro lado, no modelo de formação de preço por oferta, as decisões são descentralizadas. Cada agente tem a oportunidade de declarar a quantidade de energia que deseja vender e a que preço.
Por exemplo, se o ONS precisar despachar 10 megawatts, o agente indicará o preço pelo qual está disposto a vender essa energia. Entretanto, se o ONS necessitar despachar 100 MW, o preço aumentará para cobrir os custos operacionais.
Segundo Cunha, da PSR, a aplicação do modelo de preço por oferta traria benefícios significativos ao dar incentivos corretos aos agentes para fornecerem informações mais precisas do que o ONS consegue representar.
No modelo de preço por oferta, o ONS declararia a quantidade de energia que pretende contratar de uma determinada fonte e o preço máximo que está disposto a pagar. Por sua vez, o gerador teria que indicar a quantidade e o preço desejado para a venda. Caso o agente não entregue a quantidade desejada, será penalizado, o que incentiva a precisão das previsões.A lógica subjacente é que os geradores possuem informações privilegiadas sobre o funcionamento das usinas, possibilitando uma melhor avaliação dos riscos e das oportunidades de mercado, o que torna o sistema mais eficiente.
Segundo Richard Lee Hochstetler, chefe de Estudos Regulatórios e Econômicos do Instituto Acende Brasil, o modelo no qual os agentes submetem ofertas para determinar o preço de equilíbrio, mas a quantidade contratada é centralizada, está destinado ao fracasso. Para ele, essa poderia ser uma etapa intermediária para se alcançar o “despacho por oferta”.”Para que o mercado funcione, é necessário manter a relação entre preço e quantidade. Ou seja, quando o preço aumenta, a demanda diminui; quando o preço diminui, a demanda aumenta. Se essa relação não existir, o mercado não funciona. É exatamente essa sinalização de preço que coordena o mercado”, afirmou o especialista.
Hochstetler explica que o preço por oferta concede mais autonomia aos geradores. Ele destaca que no ano passado, 13% do potencial de geração hidrelétrica foi desperdiçado no Brasil. Como as hidrelétricas não têm controle sobre o despacho, a gestão de riscos é muito limitada, resultando em sérios problemas de incentivo. Existem também modelos híbridos de formação de preço, como no México e no Vietnã, nos quais as ofertas devem estar dentro de um intervalo de preço pré-estabelecido. Isso permite ao operador do sistema obter algumas informações de mercado, ao mesmo tempo em que impõe limitações para garantir a estabilidade do sistema.
Preço por oferta: barreiras são superáveis
De acordo com Hochstetler, a principal dificuldade do preço por oferta é lidar com o desconhecido. Muitos agentes, mesmo cientes das fragilidades e disparidades da abordagem atual, optam pelo conhecido.Outro ponto que incomoda os agentes é a preocupação com o poder de mercado, receando que certos grupos empresariais possam manipular sua produção para influenciar os preços e obter lucros excessivos.”Essa é uma preocupação válida e relevante quando se trata de uma operação descentralizada. A princípio, entendemos que as preocupações são exageradas. Primeiro, porque a geração hídrica não possui tanta flexibilidade quanto se imagina. A inflexibilidade hídrica é considerável e as afluências são elevadas, o que disciplina a atuação dos geradores. Além disso, existem os contratos de longo prazo do mercado livre. Se você deseja se proteger contra eventuais abusos de poder de mercado, pode optar por contratos de longo prazo”, disse o especialista do Acende Brasil.
Também surgem preocupações sobre como será calculado o custo de oportunidade da água. Embora seja mais simples de calcular com o modelo centralizado, isso não impede que os próprios agentes realizem esse cálculo, incorporando o comportamento que esperam dos demais agentes. Aqueles que calcularem erroneamente podem acabar com excesso de água armazenada ou ter que realizar vertimentos.
Na perspectiva de Franklin Miguel, diretor-presidente da Electra Comercializadora, antes de considerar a transição para o modelo de preço por oferta, seria mais prudente aprimorar primeiro o modelo de preço por custo. “Não sou necessariamente contra, mas acredito que, neste momento, não seja viável migrar para o modelo de preço por oferta. É necessário primeiro aprimorar o modelo de preço por custo, principalmente porque ele apresenta várias imperfeições.
Para Frederico Boschin, diretor executivo da Noale Energia, o modelo de preço por custo oferece certa previsibilidade, porém o modelo de preço por oferta está mais alinhado com as novas tecnologias renováveis. Ele argumenta que o modelo de preço por oferta promoveria mais competição para gerar energia de forma mais econômica, mas alerta que os agentes podem não ter compromisso com a segurança do sistema elétrico.”Queremos sair de um mercado mais estável, que não permite muitas manobras, e migrar para um modelo mais adequado às novas tecnologias, especialmente a energia solar, por oferecer um sinal econômico mais apropriado”, destacou Boschin.
André Oliveira, sócio da Ampere Consultoria, concorda que o modelo de preço por oferta está mais alinhado com um mercado moderno, porém ressalta que ainda há muitos aspectos a serem definidos para garantir a segurança desse modelo.”Essas decisões têm impactos significativos na vida das pessoas e nos negócios. Tomar uma decisão precipitada, sem uma análise regulatória aprofundada e sem antecipar os problemas potenciais, pode resultar em consequências econômicas negativas, problemas de fornecimento e até mesmo falência de empresas. Há muito em jogo para tomar uma decisão apressada como essa”, pondera Oliveira.
A discussão sobre a formação de preço no setor elétrico brasileiro está longe de chegar a uma conclusão, mas a abertura para explorar novos modelos e a busca por soluções mais eficientes demonstram um importante avanço na busca por um sistema energético mais robusto e resiliente. O futuro do setor elétrico pode depender da capacidade de adaptar-se a essas mudanças e encontrar um equilíbrio entre os interesses dos diversos agentes envolvidos.