Artigo: O Congresso Nacional quer ser agência reguladora?
O setor elétrico – cujos contratos variam entre 15 e 30 anos e regem usinas de geração de energia, linhas de transmissão e distribuidoras de energia – não deveria ser afetado por decisões extemporâneas de governos eleitos a cada quatro anos ou por interesses pontuais de bancadas de parlamentares eleitos a cada quatro (deputados) ou oito anos (senadores).
Mas já há algum tempo podemos detectar uma crescente interferência do Congresso Nacional sobre as atividades da Aneel que, ironicamente, foram definidas pelo próprio Congresso Nacional na Lei 9.427/1996 que instituiu a agência reguladora do setor elétrico. Logo em seu artigo 2º. a Lei diz: “A Aneel tem por finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal.”
Alguns congressistas têm recorrentemente desafiado a Lei 9.427. Os chamados Projetos de Decretos Legislativos para anular decisões da Aneel têm sido amplamente usados para “sustar” reajustes tarifários que foram calculados pela Aneel de acordo com os contratos de concessão das distribuidoras e após terem sido submetidos a longos e trabalhosos períodos de análise técnica e audiências públicas.
É importante notar a sutileza destrutiva do verbo “sustar”: a interferência dos parlamentares simplesmente susta o comando ou a decisão da Aneel, mas não coloca nenhuma solução em seu lugar, mesmo porque o Congresso Nacional não está aparelhado com as centenas de profissionais necessários para regular um setor complexo como o setor elétrico. Esses profissionais estão na Aneel e têm sido capacitados há anos para desempenhar suas funções.
Um exemplo inacreditável dessa interferência tem se desenrolado há meses e pode em breve ter desfecho extremamente negativo: o Projeto de Decreto Legislativo 365/2022 (PDL 365/2022) que visa a sustar a regulamentação das tarifas de uso dos sistemas de transmissão de energia elétrica estabelecidas pela Aneel, tema que é tratado no jargão do setor elétrico por “sinal locacional”.
Este projeto cuja iniciativa é do Deputado Danilo Forte (União/CE) foi aprovado na Câmara dos Deputados em novembro do ano passado e atualmente tramita na Comissão de Infraestrutura do Senado com relatoria do Senador Otto Alencar (PSD-BA). Ambos foram eleitos por cidadãos nordestinos que serão prejudicados se o Projeto de Decreto Legislativo 365/2022 for aprovado.
Na audiência pública sobre o tema – que aconteceu no dia 5 de julho por requerimento do Senador Luiz Carlos Heinze (PP-RS) – ficou evidente a opinião da maioria dos especialistas, que explicaram tecnicamente o sentido do chamado sinal locacional: quem usa mais a rede de transmissão precisa pagar mais por isso com tarifas mais altas. Isso é essencial para que a expansão da rede tenha os incentivos corretos e elimine distorções. Para mais detalhes, a apresentação que usamos na audiência pública está disponível em www.acendebrasil.com.br/eventos.
Surpreendentemente, mesmo após as inúmeras defesas feitas pelos técnicos e especialistas na audiência pública, o relator da matéria da Comissão de Infraestrutura do Senado apresentou seu parecer de aprovação do PDL 365/2022, justificando sua aprovação não pelo mérito das normas a serem sustadas, mas porque “as resoluções normativas [da Aneel] vão além do poder regulamentar delegado para as agências reguladoras”.
A justificativa do parecer causa muita estranheza porque não há exorbitância do poder de regulamentar da Aneel. Na verdade, o PDL 365/2022 é que representa uma clara intervenção na esfera regulatória atribuída à Aneel pelo próprio Congresso Nacional na Lei 9.427/1996, que diz em seu Artigo 3º que “compete à ANEEL definir as tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição, sendo que as de transmissão devem… utilizar sinal locacional visando a assegurar maiores encargos para os agentes que mais onerem o sistema de transmissão”. O comando é claro: quem onera mais deve pagar mais.
A revisão recente feita pela Aneel foi baseada na intensificação do sinal locacional para que os encargos de transmissão pagos pelos agentes que mais oneram o sistema de transmissão sejam maiores do que os encargos de transmissão dos agentes que demandam menos do sistema. Segundo a Aneel: “A metodologia Nodal consagrada e utilizada em diversas parte do mundo cumpre essa função, de sinalizar o preço justo para que geração e carga sejam incentivadas a estarem mais próximas possíveis a fim de reduzir os custos de ampliação do sistema.”
A revisão da Aneel sobre o sinal locacional para tarifas de transmissão foi suportada por análises técnicas profundas, simulações e Análises de Impacto Regulatório quantificando seus efeitos. E a solução tem sido equilibrada, com uma metodologia que busca ponderar a melhor técnica, a minimização dos impactos sobre os agentes e uma implementação gradual, com um período de transição de cinco anos.
Mas alguns agentes que estavam sendo beneficiados pela lógica anterior se mobilizaram e conseguiram convencer alguns parlamentares a propor o PDL 365/2022, cujo objetivo é sustar a aplicação de quatro Resoluções Normativas da Aneel que vigoram desde 2009 (REN 1041/2022, REN 1024/2022, REN 559/2013, REN 349/2009) e acabar com a lógica do sinal locacional conforme especificado clara e especificamente na Lei 9.427/1996 como atribuições da Aneel.
Portanto, o PDL 365/2022 deve ser rejeitado por múltiplas razões:
- O PDL invade a competência da Aneel definida pelo próprio Congresso Nacional;
- A Aneel apresentou análise fundamentada sobre a lógica do sinal locacional;
- O processo de Consultas Públicas da Aneel foi aberto e transparente; e
- A Aneel apresentou solução equilibrada com transição suave para a nova regra.
Temos esperança de que, cientes da gravidade das implicações desta matéria, nossos Senadores rejeitem o PDL 365/2022. Além de contradizer a legislação concebida e aprovada pelo próprio Congresso Nacional, o PDL 365/2022 cria um perigoso e deletério precedente para que qualquer agente busque intervenção de parlamentares para sustar medidas regulatórias que forem de seu desagrado.
Uma eventual intervenção do Congresso Nacional neste momento, sustando os procedimentos de definição de tarifas praticados nos últimos 13 anos, introduzirá um grau de insegurança jurídica jamais vista no setor. Afinal, estariam nossos parlamentares interessados em assumir as funções da Aneel e em inviabilizar os contratos e os investimentos do setor, deteriorando esse serviço público essencial?
Claudio Sales, Eduardo Müller Monteiro e Richard Hochstetler são do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)